Costumes dos antigos
Público 2011-02-26 José Pacheco Pereira
É absolutamente impossível ler todos os livros de qualquer biblioteca que tenha mais de 6000-7000 livrosO número de livros que se pode ler em vida é controverso e difícil de avaliar. Há livros e livros, uns maiores e outros mais pequenos, uns mais fáceis de ler e outros impossíveis de ler de forma recreativa, fluente, e que exigem uma leitura muito especial e naturalmente muito lenta. Algumas das maiores asneiras e demonstrações de ignorância que conheço são as afirmações presumidas sobre livros de que não se faz a mínima ideia o que são, muito menos lê-los.
Colecciono testemunhos de três asneiras, uma clássica, duas de pura ignorância. A clássica, chamemos-lhe assim, ocorre num romance "social" de Abel Botelho e diz respeito ao operário que tinha alimentado as chamas da sua "revolução", porque, numa noite de insónia, tinha lido o Capital de Karl Marx. Está-se mesmo a ver na mansarda esquálida, o jovem a ler sem sono à luz da vela ou do gás, o árido volume, presume-se que o primeiro, da complexa obra, que é o último texto que se pode considerar incendiário. Ainda dei o benefício de dúvida de que podia ser a edição resumida que Lafargue fez, mas mesmo assim não calha o livro com o "incêndio". O segundo exemplo foi uma aluna minha de Filosofia, num curso de adultos, que me jurou a pés juntos que, também na noite passada, tinha lido de uma assentada a Crítica da Razão Pura de Kant "inteirinha". Está visto que as noites devem ser particularmente excitantes para certos leitores, que lhes permitem ler de uma assentada várias centenas de páginas de um dos livros mais complexos da história da Filosofia. O livro então nem sequer existia em português e o seu fascínio intelectual só se apreende com uma leitura lenta, longa e quase de vida, e que implica o acesso ao vocabulário filosófico alemão, sem paralelo na sua capacidade conceptual. Chumbou, apesar da sua especialidade nocturna em Kant. O último exemplo foi a tentativa por alguns seguidores cheios de zelo, que queriam justificar uma referência de Passos Coelho a um livro que não existia, a "Fenomenologia do Ser" de Sartre, com uma confusão do leitor então muito jovem com o Ser e o Nada de Sartre, cujo subtítulo é Ensaio de Ontologia Fenomenológica. A mera ideia de que um adolescente, com "interrogações existenciais", teria lido o Ser e o Nada de Sartre, livro que os tais zelosos seguidores não faziam a mínima ideia do que fosse, ainda é mais ignorante do que a pobre aluna que tinha lido o Kant nocturno ou o operário inflamado por Karl Marx.
Voltemos aos livros que efectivamente se podem ler numa vida, deixando as imaginárias leituras para os seus cultores. Para uma biblioteca minimamente razoável, ou seja, acima dos 5000 volumes, e por isso feita por quem gosta de livros, tomo como válidos os números entre 2500 e 6000, no máximo, de livros lidos. 2500, já se trata de um muito bom leitor, 5000 um excelente leitor. Benjamin calculava o número em cerca de 10% de uma biblioteca de amador, e Churchill, numa reflexão sobre os livros que nunca teria tempo para ler, achava que tinha lido por volta de 5000, um número já muito elevado, dado que duvido que tivesse muito tempo para ler, por exemplo, nos anos da guerra.
O número razoável para um grande leitor anda à volta de 100 por ano, o que, em 60 anos úteis de leitura, dá à volta de 6000, mas, mesmo assim, parece-me já muito exagerado, porque ninguém mantém tanta regularidade de leitura. Tenho registo de ter lido na juventude quase um livro por dia, trinta por mês, mas olho com espanto para muitos desses títulos de que não me recordo absolutamente nada. "Alimentaram o monstro", mas desapareceram da memória útil. Mas lembro-me de muitos outros na mesma altura, os únicos que deveriam figurar na lista. Foi assim que li toda a colecção Argonauta até pelo menos ao número 100 e muita literatura americana, Steinbeck, Faulkner, Upton Sinclair, John dos Passos, Erskine Caldwell, todos os volumes da Ática do Pessoa e as traduções do Eliot, antes da sucessão de leituras, já noutra fase, das traduções de Quintela de Holderlin, Novalis e Rilke, e das obras de Thomas Mann. Continuei a ler muito, mas o ritmo baixou para o actual de cerca de um livro por semana, número estatístico, visto que leio dois ou três ao mesmo tempo durante várias semanas. Deixo de parte as "releituras", porque o são do mesmo livro, embora haja uma moda de "releituras", muito faladas em certas entrevistas por quem não lê quase nada - "estou a reler Eça", o livro que toda a gente se "lembra" de ter na mesinha de cabeceira - e são tão inventadas como o Kant, o Sartre e o Marx imaginários.
Na Internet, respondendo a esta mesma pergunta, há quem dê totais superiores de livros lidos, mas se eu quiser ler alguns livros infantis, até posso ler 20 por dia e fazer uma estatística absurda. No meu cálculo, os livros andam à volta de uma média de 200-250 páginas e são, na sua maioria, de leitura "narrativa", ou seja, fáceis de ler. As minhas excepções confirmam a regra, alguns dos livros que li mais recentemente chegaram às 1000 páginas, por exemplo sobre a guerra civil americana, ou a história "oficial" do MI5, e um ou outro cai na categoria do "difícil", como alguns ensaios de Teologia, mas é na base desse cálculo mais modesto que eu me coloco a mim mesmo perante o mesmo espelho de Churchill: calculo ler na vida à volta de 4000-5000 livros, e terei já lido, melhor ou pior, cerca de 3500.
Ou seja, ainda me sobram nas estantes muitos milhares para poder ler, mesmo no caso pouco provável de chegar à idade de Matusalém. Não é grande drama, pior seria deixar de ter livros para ler. Historiador, deputado do PSD
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