Meta-se na sua vida

úblico 2011-02-27  Miguel Esteves Cardoso

Uma doença exclusiva dos portugueses é acharem que tudo o que ouvem lhes é dirigido, convidando-os a responder e a participar, apesar de não terem sido os destinatários do que se disse.

É por isso que não temos tradução para overhear: tudo o que ouvimos dá-nos o direito de nos metermos na conversa. A intromissão é quase uma obrigação entre nós: é uma entremissão, uma missão que todos herdamos uns para com os outros.

Anteontem, numa mercearia, ao ver uns antigos sabonetes franceses parecidos com uns nossos de grande sucesso, gracejei, sem graça, com a Maria João: "Olha, os franceses estão a copiar a Ach. Brito". Logo interveio a merceeira: "Não, não, que essa marca francesa é muito mais antiga".

Enquanto o resto do mundo distingue o que "sobreouve" (ou não pôde deixar de ouvir) do ser interpelado, os portugueses equacionam o que é audível com fazerem parte da conversa. Os ingleses, quando intervêm, pedem desculpa e só quando sabem que podem ser prestáveis. Dizem "I couldn"t help overhearing..." e depois ajudam com uma sugestão sábia. Já o português, mesmo que esteja a três metros de distância e nunca nos tenha visto mais gordos, entra logo "na roda" e aventa, sem embaraço, que "estamos enganados, que não poderíamos estar mais longe da verdade". O tom é filantrópico: "Já que me pergunta, não me importo de o esclarecer".

Nunca conseguimos dizer: "Não estava a falar consigo". A comunidade de faladores é indestrutível. Estamos fritos.

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