Protagonistas de uma crise

 Helena Matos, Público, 2010-10-21
O PS vive na esperança que o PSD ou o PR façam o que o PS não fez: criar uma situação que leva à saída de Sócrates de cena

1.O partido que quer ser auxiliar de acção educativa. Passos Coelho tem razão: o Orçamento é mau. Além disso as propostas ontem apresentadas por Passos Coelho permitem ao Governo negociar. Mas, francamente, ter razão não chega e sobretudo Passos Coelho está enganado em tudo mais, nomeadamente quando pensa que é líder da oposição.

Para se ser líder da oposição tem de se liderar o próprio partido. Coisa quase tecnicamente impossível de suceder no PSD. E depois Passos Coelho não ignora que o PSD, além das várias divisões internas, se deixou subalternizar para um estatuto político próximo do estatuto da auxiliar de acção educativa. Ou seja, quem define o que é certo e errado é o PS. E o PSD vive sob o constante ónus de ser liberal, de não defender o Estado social, de apenas se preocupar com o betão ou de viver em obsessão com o défice. A cada uma destas acusações os sucessivos líderes do PSD desfazem-se em explicações e justificações que só acentuam o efeito dos rótulos que lhe colam. (Aos mais esquecidos sugiro que vejam os sobressaltos e as aflições que os dirigentes laranjas tiveram quando, nos idos de 2002, se viram acusados de viverem obcecados com o défice.)

Nos raros momentos em que o PSD acredita que pode quebrar este ciclo acentua-se-lhe a costela sebastianista. Morto Sá Carneiro, recordam os anos de Cavaco Silva em S. Bento como o seu Camelot. Desde aí despacham líderes como se trabalhassem numa linha de montagem. Até chegarem ao tal. E é óbvio que Passos Coelho pensa poder ser esse tal mas boa parte do seu partido pensa que esse tal deverá ser outro. Por exemplo Rui Rio.

Passos Coelho causou um sério embaraço ao seu próprio partido quando tomou a sério o debate do Orçamento. É como se ele não tivesse percebido que aquilo que se esperava dele era que aprovasse o Orçamento, deixasse passar o tempo e na altura devida se deixasse afastar para a prateleira honorífica dos pretéritos líderes sociais-democratas.

Quando o debate do Orçamento terminar saberemos também se o líder do PSD já está a prazo ou não.

2.A tribo das causas urgentes. Não sei se se deslocam em grupo, se se encontram ocasionalmente ou se os seus espíritos se unem de preferência entre o fim do Verão e o início do Outono. Mas confesso que estou a ficar cansada deles. Quem são eles? A tribo das causas urgentes. Desde há vários anos que vivemos em constante estado de urgência, ouvindo de minuto a minuto que ou fazemos algo muito rapidamente e em força ou será o caos, a desgraça e o opróbrio. Que me recorde, nos últimos anos os profetas do apocalipse mobilizaram-nos para combater a ameaça da escassez dos alimentos, a gripe A e sobretudo as alterações climáticas. Agora vivem no arrebatamento orçamental. De repente Portugal tem de ter um orçamento para mostrar ao estrangeiro, custe o que custar e independentemente do que lá estiver inscrito. Mesmo que os mercados e o estrangeiro nos fizessem a gentileza de acreditar num orçamento que prevê crescimento para o próximo ano e em que as contas do deve e haver não batem certas, há o detalhe de o Orçamento ir ser pago por nós, cá dentro. Logo, discuti-lo é não só o nosso direito mas também o nosso dever, tanto mais que o Governo é minoritário. E a não ser que se considere que agora os governos minoritários em situação de crise têm os orçamentos automaticamente aprovados não se vê nem como nem por quê se há-de temer ou abreviar essa discussão. Muito menos porque, como defendeu o ministro Silva Pereira, deve essa discussão decorrer à porta fechada. Os portugueses só são responsáveis para pagarem a dívida que os seus governantes geraram?

Sim, a discussão deve ser feita na praça pública porque é da publicidade dessa discussão que pode resultar um orçamento com impactos menos desastrosos no espaço privado dos cidadãos, das famílias e das empresas.

Depois de anos a desprezarem quem lhes falava de números e a responderem com prosa poética de 3.ª categoria aos avisos sobre o endividamento, os membros da tribo das causas urgentes descobriram que a nossa redenção está neste Orçamento. E só nos resta esperar que o transe lhes passe. Ou mais propriamente que a razão deste transe seja substituída por outra.

Porque uma das características desta espécie de tribo informal das causas urgentíssimas é que o extraordinário frenesi que se apodera deles no momento em que descobrem uma causa só tem paralelo na sua capacidade de esquecer essa causa quando a trocam por outra. Assim e apenas por isso não causa espanto que ninguém se tenha escandalizado com a extinção do Secretariado Técnico da Comissão das Alterações Climáticas. Recordo que ainda não há muito tempo as alterações climáticas nos eram apresentadas não só como uma grande questão mas como aquilo que devia ser a preocupação central de quem nos governava e de nós mesmos.

Recordo que chegou a equacionar-se a criação de uma espécie de ONU para o clima, para lá de coisas tão disparatadas quanto a criminalização do simples acto de negar as ditas alterações climáticas. Esse era o tempo em que a senhora Merkel viajava até umas paragens marítimas geladas e olhava para os icebergues que lhe diziam ameaçados pelo aquecimento global com a expressão compungida que agora reserva às contas de Portugal, Espanha e Grécia.

Entretanto, como é óbvio, o ambiente na Terra, com ou sem alterações climáticas provocadas pelo Homem, continua a colocar questões muito sérias. Mas isso agora não interessa nada. O que conta agora é ter um orçamento. O paradoxo é tal que as pessoas que durante anos foram tratadas como excêntricas ou quase paranóicas por procurarem chamar a atenção para a insustentabilidade das nossas contas se arriscam agora a passar por irresponsáveis quando defendem que este Orçamento deve ser discutido.

Tudo aquilo que nos está agora a acontecer era mais que previsto e anunciado há anos. E desde 2009 que se tornou irreversível. Simplesmente não o quisemos ver. Até porque nessa fase a tribo das causas urgentes andava entretida com umas causas intercalares, como o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo que supostamente nos manteria entretidos por algum tempo, sobretudo se o Presidente da República tivesse vetado o diploma. Este aliás é um dos casos em que a tribo era mais numerosa do que aqueles que urgentemente pretendia libertar: até Setembro de 2010 realizaram-se, em Portugal, 131 casamentos entre pessoas do mesmo sexo. O que dá 262 homossexuais casados, número francamente muito inferior ao mobilizado pela tribo das causas urgentes quando se arrebatou com esta questão que garantiam de relevância cósmica.

Não sei qual será a próxima causa urgentíssima da tribo das causas urgentes. Mas tenho a certeza que em matéria orçamental muita coisa de que nos arrependeremos mais tarde será aprovada quase sem darmos por isso caso nos deixemos mais uma vez dominar pelo folclore da urgência.

3.O homem que todos querem ver pelas costas. Mas na verdade o homem de quem todos dependem. Falo de José Sócrates naturalmente. O PS vive na esperança que o PSD ou o PR façam aquilo que em devido tempo o PS não fez: criar uma situação que leva à saída de Sócrates de cena. Infelizmente para o PS agora é tarde: as alternativas à liderança de José Sócrates foram empalidecendo de cada vez que o PS se tornou cúmplice do indefensável e disse sim ao que bem sabe que devia ter dito não.

Sócrates é ignorantíssimo, fútil, não tem sentido de Estado e tomou decisões na sua vida académica, profissional e política que a maior parte dos portugueses, até o conhecerem como primeiro-ministro, repudiariam liminarmente. Mas tem uma noção agudíssima do poder. Enquanto o exerceu de facto transformou o aparelho de Estado na sua máquina e fez de cada português um dependente do Estado.

Continua a fazê-lo agora, quando já não se pode dizer que exerce o poder porque neste momento trata sim ou de arranjar uma situação que lhe permita sair condignamente ou de conseguir uma legitimidade reforçada no cargo de primeiro-ministro.

José Sócrates começou por dizer que se demitiria caso o Orçamento fosse chumbado. Qualquer primeiro-ministro de um governo minoritário em Portugal sabe que pode ter um orçamento chumbado. Até agora José Sócrates nem sequer se deu ao trabalho de explicar essa sua decisão. Aceita-se como natural. E nele é natural. Este é um exemplo. Mas podem arranjar-se centenas deles.

Em tempos de crise homens assim transmitem uma imagem de segurança que não é irrelevante quando se sabe que se têm de ganhar eleições e sobretudo enfrentar forte contestação. Certamente que muitos desejariam ver Sócrates pelas costas. Mas são ainda mais aqueles que no seu partido e fora dele temem o vazio que essa ausência poderia gerar. Ensaísta

P.S.- Eu sei que são apenas 49 milhões de euros, coisa pouca para a nossa grande aflição orçamental. Mas alguém me pode informar se já foi suspenso aquele projecto que visava colocar 187 entidades públicas de Portugal e Espanha a controlar 150 mil cabras, cujas supostamente funcionariam como "limpadores naturais" na zona fronteiriça?

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