Crises nacionais e a Crise

Público, 2010-10-15 Luís Campos e Cunha
A Crise foi um teste de resistência a cada economia e cada uma partiu pelo elo mais fraco: são as crises nacionais

Quando há uma chuva diluviana, há inundações, constipações, gripes, casas alagadas e outras coisas mais ou menos chatas que a imaginação nos permita conceber. A chuva foi a mesma para todos, mas tem consequências diferentes de família para família. O mesmo se passou com a crise de 2008-2009 -"a Crise"- que teve consequências diferentes de país para país. Não perceber isto leva a fazer neste momento um diagnóstico errado da situação e, assim, a ter receitas de política económica também erradas. Naturalmente.

Mas, naturalmente, todos aplicam directamente a Portugal o que lêem no Krugman ou no Stiglitz -que falam de e para os Estados Unidos. Provincianismo?

A Crise implicou uma queda muito forte no produto dos países desenvolvidos, basicamente Estados Unidos, Europa e Japão. Na Índia, China ou Brasil mal se sentiu a Crise: primeira diferença.

A segunda diferença tem a ver com os impactos internos da Crise. Antes da Crise cada país tinha as suas vulnerabilidades, todas mais ou menos específicas de cada país. A Crise foi um teste de resistência a cada economia e cada uma partiu pelo elo mais fraco: são as crises nacionais. O que estamos a assistir não é tanto à Crise mas à ressaca da dita. Ou seja, cada país tem uns quantos elos partidos. A Alemanha parece ter poucos ou nenhuns, mas Portugal, a Irlanda ou até a Espanha estão em maus lençóis (para não falar da Grécia). Porquê? Porque cada um destes países tinha a sua debilidade, que foi exposta com o abalo da Crise. Hoje, cada caso é um caso.

A crise da Espanha é consequência da bolha imobiliária que, ao rebentar, passou para alguns bancos (mais correctamente algumas cajas), criando-lhes problemas sérios. O Governo teve de intervir no sector bancário, o que, aliado ao aumento do desemprego, levou a um défice público recorde, bem acima dos 10% em 2009. Os mercados assustaram-se com a Espanha, mas as medidas tomadas a tempo debelaram o problema e está a recuperar a reputação e a credibilidade internacionais. Note-se que Espanha, antes de 2008, teve ao longo de vários anos excedentes orçamentais e o nível da dívida pública rondava os 45% do PIB. A Espanha tinha a casa arrumada, o vendaval da Crise desarrumou-a, mas rapidamente tudo está a voltar ao normal. O elo fraco da Espanha, que quebrou com a crise, foi o sector imobiliário.

A Irlanda, teve uma bolha imobiliária (tal como a Espanha), mas o maior problema foi ter bancos muito internacionalizados e grandes, que sofreram as consequências de uma má avaliação de risco, entrando em falência. O Estado teve de intervir, mas os bancos eram demasiado grandes para a economia do país. Os défices escalaram de modo assustador. Apesar dos irlandeses terem tomado medidas orçamentais muito corajosas, logo em finais de 2009, estas estão a revelar-se insuficientes com a dimensão crescente do problema bancário. De qualquer modo, antes de 2008, a Irlanda teve ao longo de 15 anos níveis de crescimento sempre elevadíssimos e excedentes orçamentais muito significativos, com um nível de endividamento público a rondar uns 25%. A Crise quebrou o elo fraco da Irlanda que eram os bancos, demasiado grandes e mal geridos.

O caso português é bem diferente: não tivemos nenhuma bolha imobiliária nos últimos dez anos; nem tivemos problemas bancários relevantes. O sistema financeiro aguentou muito bem o impacto da Crise, porque não tinha activos tóxicos, nem importados, nem de produção nacional. Mas o impacto da Crise no PIB e no desemprego apanhou o Estado português numa situação financeira muito débil e com baixo crescimento. As receitas públicas caíram, a despesa social (naturalmente) subiu - como aconteceu noutros países -, mas as contas públicas não aguentaram. Somou-se a tudo isto uma política eleitoralista, o descontrolo da despesa com a saúde e a cedência a grupos profissionais específicos. Negou-se a evidência, reagiu-se sempre tarde de mais e a reputação nacional ficou muito abalada e para muitos anos. A despesa pública cresceu para além da misericórdia dos deuses, a dívida pública bateu recordes de sempre. O elo fraco da economia portuguesa eram as contas públicas - défices descontrolados e níveis de endividamento acima dos 70% antes da Crise - aliadas à estagnação do rendimento.

A Grécia é um caso ainda mais à parte. Na Grécia havia tudo de tudo: contas públicas num estado inenarrável (e falseadas); bolha imobiliária; e sistema bancário em ruína.

Como vimos, a Crise foi um terramoto que abalou os alicerces de todas as economias. Mas o edifício económico de cada país cedeu em pontos diferentes. Em Espanha foi a bolha imobiliária com todas as suas consequências, mas já está fora dos radares dos polícias dos mercados. A Irlanda teve mais azar: o sistema bancário ruiu. Mas a excelente reputação do passado recente e a excelência das sua contas públicas antes da Crise virão ao de cima. Em Portugal a Crise pôs a nu o mau estado das contas do Estado e o baixo crescimento potencial.

As políticas têm de ser necessariamente ajustadas a cada situação: partir as duas pernas, como a Irlanda, é diferente de ser toxicodependente, como Portugal. Também as terapias devem ser diferentes, forçosamente. Não perceber isto é perigoso. Professor universitário

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