O último

Público, 2010-10-02 Pedro Mexia pedromexia@gmail.com
O ideal monárquico entende a pessoa do rei como uma continuidade histórica e uma encarnação da pátria. É essa dimensão de "história de família" que faz com que a monarquia seja um sistema eminentemente trágico. Cada rei prossegue e transmite um legado, e um legado é um objecto frágil. Quase todos os reis dos últimos cem anos sentiram nalgum momento que eram o fim da linha. Que eram o último rei.
O último rei português, Manuel, segundo desse nome, não nasceu para ser rei. Mas a 1 de Fevereiro de 1908, no Terreiro do Paço, em Lisboa, dois homens lançaram-se sobre a carruagem aberta que transportava a família real e, na fuzilada que se seguiu, mataram o rei de Portugal e o príncipe herdeiro.
O regicídio é de facto o fim da monarquia. O curto reinado de D. Manuel II (1908-1910) foi apenas um epílogo. O rei, um monarca escrupulosamente constitucional, desfez leis de censura, concedeu amnistias, negociou com quase toda a gente, nomeou governos ditos de "acalmação". Mas a calma era impossível. O rotativismo estava gasto, os partidos implodiam em facções, havia intriga e balbúrdia em todo o lado. E os republicanos iam crescendo no parlamento e nas ruas. A queda do regime era inevitável. E 500 homens barricados na Rotunda bastaram para que uma monarquia com oito séculos caísse. Ao verem uns diplomatas alemães com uma bandeira branca, a tentarem escapar aos tiros, os revoltosos pensam que se trata da rendição oficial das forças monárquicas. Festejam a vitória e proclamam a República.
O rei, bombardeado no Paço das Necessidades, não tem outro remédio que não a fuga. É impressionante aquela fotografia da comitiva real entrando a bordo do iate Amélia, na Ericeira, aristocratas só com a roupa do corpo, tristes e organizados, a caminho do exílio, e lá ao cimo das arribas os pescadores, parados, entre a curiosidade e o respeito, enquanto se ia embora o último rei de Portugal.
Primeiro ficou em Gibraltar, depois embarcou num iate enviado pela Coroa inglesa com destino ao Reino Unido. É a chamada "corte da saudade", que se instala em Londres e arredores, lembrando nos relvados ingleses os campos e areais de Portugal. Manuel vive em Richmond, e depois, após o casamento com uma princesa Hohenzollern, em Twickenham, numa mansão setecentista ajardinada chamada Fulwell Park. Endividado, vai ainda assim acumulando uma grande biblioteca. Cansado de incontáveis e infrutíferas diligências junto das várias tendências monárquicas, e depois do fiasco das incursões de Paiva Couceiro, Manuel dedica-se quase em exclusivo à bibliofilia. Redige um catálogo erudito da sua colecção: Livros Antigos Portugueses 1489-1600, da Biblioteca de Sua Majestade Fidelíssima Descriptos por S.M. El-Rei D. Manuel em Três Volumes, com edição, bilingue, da Cambridge University Press. Os livros, confessou, são "amigos silenciosos e fiéis", e Manuel estava farto de tagarelas e traidores. Privado de um papel activo na História de Portugal, o rei destronado ligou-se à História através dos livros. Ele agora era um espectador. Um dia, Manuel foi ao museu parisiense Jeu de Paume ver os Painéis de Nuno Gonçalves, e contemplou em terra alheia esse símbolo nacional. Uma narrativa exaltante, estupenda, hierática, a que ele já não pertencia.
Provavelmente, a monarquia acabou quando devia acabar. O regime não tinha salvação. E certos monárquicos mereciam a República que depois tiveram. O último rei, moderado, zeloso, constitucional, foi um monarca moderno, como os reis nórdicos de hoje. Nunca aceitou as teses dos ultras, e, como bom anglófilo, defendia um rei que reina e que não governa. Alguns contemporâneos londrinos, entre os quais Churchill, deixaram registado o seu apreço por aquele homem inteligente, educado, distinto, culto, espirituoso e convicto. A aristocracia e a realeza europeias sempre trataram Manuel com afecto. Os paroquianos ingleses da Igreja de St. James levantavam-se quando ele entrava na missa. E o povo britânico ficou grato de o ver a trabalhar como voluntário, cuidando dos feridos da I Guerra. Ainda hoje, em Twickenham, existem uma Manoel Road, uma Lisbon Avenue e Portugal Gardens.
Nos últimos anos, a monarquia portuguesa descambou em farsa, passou pela tragédia sangrenta e acabou em impotência. O único consolo dos monárquicos é que o último rei foi um homem decente, que podia ter sido rei de uma monarquia decente, se ainda fôssemos a tempo disso, e não fomos. E assim acabou um antigo legado, com Manuel, segundo e último desse nome.

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