Da vida para lá do deficit à ditadura das finanças
Público, 2010-10-14, Helena Matos
Ditadura porque tomou conta das nossas vidas, porque, em seu nome, somos privados do que julgávamos adquirido
Enquanto escrevo, vou vendo os mineiros chilenos saindo da mina de San José. Para lá da imensa emoção de ver chegar ao fim o calvário daqueles homens, senti inveja quando vi as imagens do filho de Florencio Avalos, o primeiro mineiro a ser resgatado, com um balão com a bandeira do Chile gravada e de Mario Sepúlveda, o segundo homem a sair da mina, a gritar "Viva Chile". E senti inveja porque alguém nos roubou o orgulho e a alegria de sermos portugueses.
Por razões que a História explica mas não desculpa, em Portugal, os símbolos do país e os seus feitos ficaram reféns dos regimes. Foi preciso que um brasileiro se tornasse seleccionador nacional para que pegássemos na bandeira sem temermos que pensassem que éramos isto ou aquilo. Orgulharmo-nos da viagem do Vasco da Gama, da capacidade empreendedora demonstrada em África pelos portugueses ou da solitária decisão de Aristides Sousa Mendes implica passar o restante tempo a ter de se provar que não se é isto ou aquilo.
Esta incapacidade de dissociarmos o país do Governo dá aos governos um ascendente que em muito ultrapassa não apenas o que deve ser o seu âmbito mas também o seu lugar. Portugal só nos chega nos momentos em que já não se pode iludir as crises e há que pedir ao povo que faça sacrifícios. Nos outros dias, apenas se fala de Governo: o Governo quer, o Governo decide, o Governo aprovou...
As elites e as corporações fazem revoluções em nome do povo. Governam para a sociedade. Mas, quando tudo corre mal, invocam a palavra Portugal para que o povo mais uma vez faça o que é necessário por Portugal. E o povo faz. Seja engolindo em seco enquanto os seus filhos combatem num mapa longínquo, seja procurando sobreviver no meio da loucura legislativa que as elites aprovam, seja empobrecendo através de impostos que pagam as dívidas que alguém contraiu em nome do seu país.
Nunca em Portugal as elites prestam contas ao povo dos resultados do que lhe pedem. O mais que fazem é promoverem mudanças de regime em que acusam os anteriores governantes de terem enganado o povo.
Não é simples coincidência que, na nossa História do século XX, as mudanças tenham nascido de revoluções e não de transições: não só as revoluções são bem mais fáceis de fazer do que as transições como têm para os seus protagonistas a extraordinária vantagem da desresponsabilização.
Nos regimes instituídos em 1910, em 1926 e em 1974, encontramos sempre não só o lavar de mãos dos novos governantes sobre as responsabilidades quanto ao passado como a recorrente invocação dos desmandos dos governantes pretéritos para justificar os falhanços dos governantes do presente. O povo, esse, é que é sempre o mesmo. E, assim, antes sequer de ter tempo de perceber o resultado dos sacrifícios que lhe foram pedidos pelos afastados do poder, já se está a preparar para fazer os sacrifícios que os novos governantes lhe estão a pedir. Sendo que o pedir, nesta matéria, é um eufemismo, pois, perante a gravidade das situações, o povo sabe bem que não pode dizer "não". Quando finalmente, no desencanto das revoluções, as crises se impõem, as elites viram-se para o povo e pedem-lhe sacrifícios em nome de Portugal. Pois sabem que, se pronunciarem essa palavra, "Portugal", não só o povo não lhes pedirá muitas explicações como também sabem que não haverá tempo para que alguém lhes pergunte: o que andaram a fazer até agora?
Em 2010, o problema das elites é que agora não podem fazer uma revolução. E, na ausência do providencial ruído gerado pelas revoluções, sabem que essa pergunta acabará por ser colocada. Arranjar um bode expiatório é a saída que lhes resta. Primeiro foram os "bota-abaixistas" que não percebiam a realidade maravilhosa do país. Depois os mercados que não conheciam a nossa realidade e que se obstinavam em nos atacar. Agora é o Passos Coelho.
Se esses 33 mineiros da mina de San José ou outros quaisquer regressados à contemporaneidade tivessem, de repente, acesso às notícias sobre Portugal, ficariam convencidos que este país é governado por um homem chamado Passos Coelho. Um homem poderosíssimo, pois, a acreditar nos jornais, televisões, rádios e demais forças vivas do país, nas suas mãos está o destino de Portugal: dele, em exclusivo, depende que Portugal tenha um Orçamento de Estado. E desse Orçamento de Estado depende a soberania do país: o sim ou o não de Passos Coelho ao Orçamento coloca-o, em 2010, entre a presciência de D. Afonso Henriques quando assinou o Tratado de Zamora ou a irresponsabilidade megalómana de D. Sebastião quando partiu para Alcácer-Quibir.
Tais desproporção e distorção da realidade são um sinal do nosso desespero. E, sobretudo, do desespero de quem nos governa, entendendo aqui por quem nos governa não apenas o grotesco psicodrama dos governos de Sócrates mas toda essa classe de ministros, ex-ministros, governadores, consultores, presidentes disto e daquilo, reguladores, etc... etc, que, ao longo dos anos, nos têm garantido que estava tudo bem, que a sociedade ia ser a cada ano mais justa, mais solidária, mais igual... Agora, na hora de nos dizerem que a cascata das contas de somar com que fizeram campanhas eleitorais e se legitimaram no aparelho do Estado afinal só deu menos - sem crédito, seremos menos país, nós vamos ter menos do que já tivemos e os nossos filhos menos ainda -, querem fazer-nos acreditar ainda que existe uma solução miraculosa: aprovar um Orçamento em Outubro de 2010.
Esta ilusão é tão patética quanto aquelas outras em que nos andámos a embalar e que José Sócrates é exímio a vender. Se fosse tão fácil assim convencer os mercados da nossa capacidade de honrar os compromissos nós teríamos mais crédito do que a Suíça, pois Orçamentos aprovados, com contas maravilhosas lá inscritas, é o que não tem faltado a Portugal nos últimos anos. O problema é que esta derradeira ilusão não nos pode tornar apenas mais pobres como todas as anteriores mas também menos democráticos caso se insista na tese de que o Orçamento tem de ser aprovado a qualquer custo e independentemente do que lá estiver inscrito.
Em primeiro lugar, os portugueses têm direito a que o seu Orçamento lhes seja explicado e que seja discutido. Porque são os portugueses que têm de o pagar. Tal como são os portugueses quem tem de pagar as consequências funestas dos anteriores Orçamentos aprovados com tanta concórdia pela classe política. Assim, aos portugueses resta-lhes agora exigir que este Orçamento seja o melhor possível. E isso só se consegue com discussão e negociação, não com chantagens e dramatizações.
Em segundo lugar, e muito mais importante no nosso sistema político, aprovar, viabilizar ou chumbar um Orçamento faz parte dos poderes dos partidos com representação parlamentar. Logo, tal como Passos Coelho e o PSD devem ser responsabilizados pelas opções que tomarem em relação a este Orçamento - nomeadamente, avaliando-se se as condições que propõem para o viabilizar são aceitáveis pelo Governo e positivas para o país -, também o Governo e o PS têm de ser responsabilizados pela forma como aceitam ou rejeitam negociar. Quando, em 2009, José Sócrates se candidatou a primeiro-ministro, não exigiu maioria absoluta. Desde Setembro do ano passado que sabe que tem de negociar os Orçamentos.
Acredito que não será bom para o país não ter um Orçamento rapidamente aprovado, mas saem-nos mais caras ainda quaisquer tentativas de saltar etapas das regras da democracia tentando trocar este debate sobre o Orçamento por anúncios prévios de acordo, veto ou demissão.
Afinal, seis anos depois de Jorge Sampaio, então Presidente da República, ter declarado que há vida para lá do deficit, podemos confirmar que, de facto, existe vida para lá do deficit. Chama-se ditadura das finanças.
Ditadura porque o deficit atingiu tal ponto que não permite que pensemos noutra coisa ou que tenhamos outras prioridades que não sejam controlá-lo. Ditadura porque tomou conta das nossas vidas. Ditadura porque, em seu nome, somos privados do que julgávamos adquirido. E ditadura porque, invocando-o, se tenta questionar o próprio funcionamento do regime.
A vida para lá do deficit não só é muito difícil como não se recomenda. Ensaísta
Ditadura porque tomou conta das nossas vidas, porque, em seu nome, somos privados do que julgávamos adquirido
Enquanto escrevo, vou vendo os mineiros chilenos saindo da mina de San José. Para lá da imensa emoção de ver chegar ao fim o calvário daqueles homens, senti inveja quando vi as imagens do filho de Florencio Avalos, o primeiro mineiro a ser resgatado, com um balão com a bandeira do Chile gravada e de Mario Sepúlveda, o segundo homem a sair da mina, a gritar "Viva Chile". E senti inveja porque alguém nos roubou o orgulho e a alegria de sermos portugueses.
Por razões que a História explica mas não desculpa, em Portugal, os símbolos do país e os seus feitos ficaram reféns dos regimes. Foi preciso que um brasileiro se tornasse seleccionador nacional para que pegássemos na bandeira sem temermos que pensassem que éramos isto ou aquilo. Orgulharmo-nos da viagem do Vasco da Gama, da capacidade empreendedora demonstrada em África pelos portugueses ou da solitária decisão de Aristides Sousa Mendes implica passar o restante tempo a ter de se provar que não se é isto ou aquilo.
Esta incapacidade de dissociarmos o país do Governo dá aos governos um ascendente que em muito ultrapassa não apenas o que deve ser o seu âmbito mas também o seu lugar. Portugal só nos chega nos momentos em que já não se pode iludir as crises e há que pedir ao povo que faça sacrifícios. Nos outros dias, apenas se fala de Governo: o Governo quer, o Governo decide, o Governo aprovou...
As elites e as corporações fazem revoluções em nome do povo. Governam para a sociedade. Mas, quando tudo corre mal, invocam a palavra Portugal para que o povo mais uma vez faça o que é necessário por Portugal. E o povo faz. Seja engolindo em seco enquanto os seus filhos combatem num mapa longínquo, seja procurando sobreviver no meio da loucura legislativa que as elites aprovam, seja empobrecendo através de impostos que pagam as dívidas que alguém contraiu em nome do seu país.
Nunca em Portugal as elites prestam contas ao povo dos resultados do que lhe pedem. O mais que fazem é promoverem mudanças de regime em que acusam os anteriores governantes de terem enganado o povo.
Não é simples coincidência que, na nossa História do século XX, as mudanças tenham nascido de revoluções e não de transições: não só as revoluções são bem mais fáceis de fazer do que as transições como têm para os seus protagonistas a extraordinária vantagem da desresponsabilização.
Nos regimes instituídos em 1910, em 1926 e em 1974, encontramos sempre não só o lavar de mãos dos novos governantes sobre as responsabilidades quanto ao passado como a recorrente invocação dos desmandos dos governantes pretéritos para justificar os falhanços dos governantes do presente. O povo, esse, é que é sempre o mesmo. E, assim, antes sequer de ter tempo de perceber o resultado dos sacrifícios que lhe foram pedidos pelos afastados do poder, já se está a preparar para fazer os sacrifícios que os novos governantes lhe estão a pedir. Sendo que o pedir, nesta matéria, é um eufemismo, pois, perante a gravidade das situações, o povo sabe bem que não pode dizer "não". Quando finalmente, no desencanto das revoluções, as crises se impõem, as elites viram-se para o povo e pedem-lhe sacrifícios em nome de Portugal. Pois sabem que, se pronunciarem essa palavra, "Portugal", não só o povo não lhes pedirá muitas explicações como também sabem que não haverá tempo para que alguém lhes pergunte: o que andaram a fazer até agora?
Em 2010, o problema das elites é que agora não podem fazer uma revolução. E, na ausência do providencial ruído gerado pelas revoluções, sabem que essa pergunta acabará por ser colocada. Arranjar um bode expiatório é a saída que lhes resta. Primeiro foram os "bota-abaixistas" que não percebiam a realidade maravilhosa do país. Depois os mercados que não conheciam a nossa realidade e que se obstinavam em nos atacar. Agora é o Passos Coelho.
Se esses 33 mineiros da mina de San José ou outros quaisquer regressados à contemporaneidade tivessem, de repente, acesso às notícias sobre Portugal, ficariam convencidos que este país é governado por um homem chamado Passos Coelho. Um homem poderosíssimo, pois, a acreditar nos jornais, televisões, rádios e demais forças vivas do país, nas suas mãos está o destino de Portugal: dele, em exclusivo, depende que Portugal tenha um Orçamento de Estado. E desse Orçamento de Estado depende a soberania do país: o sim ou o não de Passos Coelho ao Orçamento coloca-o, em 2010, entre a presciência de D. Afonso Henriques quando assinou o Tratado de Zamora ou a irresponsabilidade megalómana de D. Sebastião quando partiu para Alcácer-Quibir.
Tais desproporção e distorção da realidade são um sinal do nosso desespero. E, sobretudo, do desespero de quem nos governa, entendendo aqui por quem nos governa não apenas o grotesco psicodrama dos governos de Sócrates mas toda essa classe de ministros, ex-ministros, governadores, consultores, presidentes disto e daquilo, reguladores, etc... etc, que, ao longo dos anos, nos têm garantido que estava tudo bem, que a sociedade ia ser a cada ano mais justa, mais solidária, mais igual... Agora, na hora de nos dizerem que a cascata das contas de somar com que fizeram campanhas eleitorais e se legitimaram no aparelho do Estado afinal só deu menos - sem crédito, seremos menos país, nós vamos ter menos do que já tivemos e os nossos filhos menos ainda -, querem fazer-nos acreditar ainda que existe uma solução miraculosa: aprovar um Orçamento em Outubro de 2010.
Esta ilusão é tão patética quanto aquelas outras em que nos andámos a embalar e que José Sócrates é exímio a vender. Se fosse tão fácil assim convencer os mercados da nossa capacidade de honrar os compromissos nós teríamos mais crédito do que a Suíça, pois Orçamentos aprovados, com contas maravilhosas lá inscritas, é o que não tem faltado a Portugal nos últimos anos. O problema é que esta derradeira ilusão não nos pode tornar apenas mais pobres como todas as anteriores mas também menos democráticos caso se insista na tese de que o Orçamento tem de ser aprovado a qualquer custo e independentemente do que lá estiver inscrito.
Em primeiro lugar, os portugueses têm direito a que o seu Orçamento lhes seja explicado e que seja discutido. Porque são os portugueses que têm de o pagar. Tal como são os portugueses quem tem de pagar as consequências funestas dos anteriores Orçamentos aprovados com tanta concórdia pela classe política. Assim, aos portugueses resta-lhes agora exigir que este Orçamento seja o melhor possível. E isso só se consegue com discussão e negociação, não com chantagens e dramatizações.
Em segundo lugar, e muito mais importante no nosso sistema político, aprovar, viabilizar ou chumbar um Orçamento faz parte dos poderes dos partidos com representação parlamentar. Logo, tal como Passos Coelho e o PSD devem ser responsabilizados pelas opções que tomarem em relação a este Orçamento - nomeadamente, avaliando-se se as condições que propõem para o viabilizar são aceitáveis pelo Governo e positivas para o país -, também o Governo e o PS têm de ser responsabilizados pela forma como aceitam ou rejeitam negociar. Quando, em 2009, José Sócrates se candidatou a primeiro-ministro, não exigiu maioria absoluta. Desde Setembro do ano passado que sabe que tem de negociar os Orçamentos.
Acredito que não será bom para o país não ter um Orçamento rapidamente aprovado, mas saem-nos mais caras ainda quaisquer tentativas de saltar etapas das regras da democracia tentando trocar este debate sobre o Orçamento por anúncios prévios de acordo, veto ou demissão.
Afinal, seis anos depois de Jorge Sampaio, então Presidente da República, ter declarado que há vida para lá do deficit, podemos confirmar que, de facto, existe vida para lá do deficit. Chama-se ditadura das finanças.
Ditadura porque o deficit atingiu tal ponto que não permite que pensemos noutra coisa ou que tenhamos outras prioridades que não sejam controlá-lo. Ditadura porque tomou conta das nossas vidas. Ditadura porque, em seu nome, somos privados do que julgávamos adquirido. E ditadura porque, invocando-o, se tenta questionar o próprio funcionamento do regime.
A vida para lá do deficit não só é muito difícil como não se recomenda. Ensaísta
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