O que se pôde arranjar

>Público, 2010.10.07 Helena Matos
A 5 de Outubro de 2010 a III República não tinha nada a que pudesse chamar seu para inaugurar

Não era para ter sido assim. Este 5 de Outubro deveria ter funcionado como a cerimónia de entronização de Mário Soares. O país agradecido, particularmente aquele que em tempos lhe fizera oposição, exaltar-lhe-ia a bonomia e mostrar-se-ia mais uma vez rendido a tanta argúcia política. Seria uma repetição da idolatria em torno dum Presidente-Rei, agora no campo político oposto àquele que outrora foi ocupado por Sidónio Pais.
O país, esse deveria estar entusiasmado com o choque tecnológico prometido por José Sócrates em 2005 e que, a par das leis positivistas de engenharia social sobre a família, teria transportado os portugueses para uma nova era de progressismo.
Como símbolo de tudo isso, o Governo deveria ter feito uma inauguração com pompa e circunstância de algo que simbolizasse a superioridade moral do regime republicano, por exemplo uma versão lusa da pirâmide do Louvre no Terreiro do Paço, como chegou a ser sugerido.
Mas nada aconteceu como sonhado: o homem que ocupa em 2010 o lugar de Presidente da República foi e é visto como um forasteiro nas cúpulas do poder dessa República em que o PS jacobinamente se constituiu como o compasso e o esquadro do que é bom e mau, razoável e excêntrico, tolerável e nefando na sociedade portuguesa. É certo que Cavaco Silva nunca afronta directamente esse sector, até porque sabe que sairia derrotado desse confronto. Mas mói-o. E essa é a sua forma de se impor.
O poder é uma grande escola e Cavaco Silva sabe por experiência própria que se mantém verdadeiro e actual o retrato político de Portugal traçado por António Teixeira de Sousa, o liberal que chefiou o último Governo da Monarquia, e que Cavaco Silva citou no seu discurso deste 5 de Outubro: "Vi que a luta era impossível. A Monarquia estava cercada de republicanos e indiferentes". Isto era verdade em 1910. E é verdade em 2010. Pois não interessa que António Teixeira de Sousa tenha sido muito mais democrático que a esmagadora maioria dos homens que em Portugal lhe sucederam como primeiros-ministros ao longo do século XX, tal como também pouco interessa que Cavaco Silva tenha mostrado enquanto primeiro-ministro e Presidente da República um entendimento muito mais democrático e escrupuloso do âmbito e dos limites dos seus poderes do que aquele que tem sido manifestado por José Sócrates como primeiro-ministro e por Mário Soares e Jorge Sampaio enquanto Presidentes da República.
O que verdadeiramente conta na hora da verdade é que o campo político em que se inscreve Sócrates tem do seu lado os herdeiros da exaltação republicana de 1910 e o de Cavaco Silva conta com a reserva dos indiferentes.
Esse povo de indiferentes que vai das margens do PS às do PP está mobilizado para colocar o seu homem em Belém. Não lhe exigem nada, pois sabem que Cavaco Silva só fará o que bem entender. Vê-lo a cumprir um segundo mandato, com o PS e particularmente Soares a assistir é vitória mais do que q.b. No mais comprazem-se a comentar os desmandos do Governo socialista, as tristes figuras de Sócrates por esse mundo fora e, num reconhecimento antecipado da sua derrota ideológica, comentam: "Se fôssemos nós..."
Sabem bem que não seriam. Ninguém os deixava durar tanto (a propósito, alguém sabe por que foi demitido Santana Lopes?). E lá no fundo muitos deles agradecem a Sócrates estar a tomar estas medidas, pois outro partido que à direita do PS as empreendesse provocaria um levantamento nacional com inevitáveis acorrentados no Bolhão invocando pretéritas grilhetas.
Por isso o Presidente da República se reencontrou a 5 de Outubro de 2010 nas palavras de um homem a quem a História dá razão mas que nada pôde contra os factos: é certo que, ao contrário de António Teixeira de Sousa, Cavaco Silva é um vencedor. Mas a sua vitória é isso mesmo: é sua. Ao tornar-se Presidente da República, Cavaco Silva realizou o quase impossível, tendo em conta a maioria de esquerda existente no país. Mas os custos desse seu triunfo são enormes para o PSD, para quem a ilusória mais-valia de o seu antigo líder estar em Belém se traduz na multiplicação das dificuldades e sobretudo dos embaraços para chegar a S. Bento. Para que Cavaco ganhe, o PSD não deve manifestar ambições de poder. E não adianta comentar que o mesmo não se aplica ao PS, pois os lamentos não fazem parte da política. Como diria Guterres: "É a vida".
E assim, no país em que aqueles que se reivindicam continuadores desses mais jacobinos do que republicanos do século passado mantêm uma inegável superioridade ideológica, faz todo o sentido que o discurso de José Sócrates tenha sido o mais fiel ao espírito do 5 de Outubro de 1910. Catadupas de frases adjectivadas constroem uma imagem caricatural do que Sócrates define como inimigo: "Condenação fatalista"; "atraso inultrapassável"; "derrotismo pessimista e paralisante"; "o passadismo atávico, resignado e entorpecedor"... etc... etc. Ao ouvir o actual primeiro-ministro, era como se estivéssemos num daqueles comícios republicanos de 1908 e 1909 em que oradores exaltados anunciavam aos caixeiros de Lisboa e Porto um Portugal radioso assim que se libertasse o país da "decadência irreversível e inelutável" então personificada na Monarquia.
O país de que Sócrates é primeiro-ministro há cinco anos é hoje muito mais pobre do que era há cinco anos. Aumentou o desemprego e a desconfiança em relação à justiça. O Estado deixou definitivamente de ser visto como pessoa de bem e passou à qualidade de padrinho. É certo que padrinho à beira da falência, mas ainda com o suficiente para acudir aos escolhidos. Baixam-se salários e aumentam-se impostos. Banalizou-se o facto de o nome do primeiro-ministro ser recorrentemente referido em casos em fase de investigação. Dá-se como adquirido que as contas públicas não estão a correr como previsto e a oligarquia da República de que Almeida Santos é o expoente por definição acha que o povo deve fazer sacrifícios tal como o Governo os faz. Mas o que é esta sucessão de factos ao pé daquela retórica que reduz os adversários "ao negativismo exacerbado, ao protesto inconsequente, à reivindicação irrealista, à agitação irresponsável e demagógica"?
Primeiro foi o PS e depois o país que ficaram reféns de Sócrates. Um partido que não contesta um líder com o perfil, as histórias e as historietas de Sócrates fica-lhe nas mãos. Mas com o PS e para lá dele, Portugal foi-se enleando naquela visão maniqueísta do mundo e conspirativa da realidade. A crise não é nossa, mas sim internacional. As medidas têm de ser tomadas não porque sejam indispensáveis, mas sim porque os mercados estão nervosos. E estão nervosos não com a nossa dívida, mas sim com a Irlanda... Já não interessa se as pessoas acreditam nisto ou não. Nesta fase precisam desesperadamente de acreditar. Todas as semanas há mais um combate a travar entre a ordem e a desordem, a luz e as trevas. E em que, apesar de tudo, analisadas as circunstâncias, surge como melhor para o país apoiar Sócrates. Agora temos a discussão do Orçamento, facto normal e desejável em qualquer democracia, transformada numa espécie de birra da oposição que põe em causa os superiores interesses do país. Pois o primeiro-ministro ameaçou que se demitia caso o Orçamento fosse chumbado. Já ninguém se lembra que ainda em Janeiro o mesmo primeiro-ministro ameaçara demitir-se por causa da Lei das Finanças Regionais. A irrelevância das verbas em causa e a tempestade que se abateu sobre a Madeira fizeram com que essa ameaça de demissão tivesse sido rapidamente esquecida. Agora é o Orçamento. Amanhã será outra coisa qualquer, pois Sócrates, após ter passado uma boa parte do seu tempo como primeiro-ministro na expectativa de que as investigações a casos como a Cova da Beira, Freeport e Face Oculta levassem ao seu afastamento do poder, passou a usar a hipótese da sua saída para mostrar aos seus adversários, e entre estes particularmente ao líder do PSD, que o capital mais importante para permanecer no poder não é tanto ser-se apoiado. É sobretudo conseguir convencer o eleitorado de que não há alternativas. Ou de que se é a alternativa menos má. Esta estratégia é uma adaptação grotesca mas eficaz do slogan do "Vota Tiririca: pior do que está não fica". Afinal os portugueses acreditam que, caso fiquem com Sócrates, viverão dias piores do que os actuais. Mas acreditam que, apesar de tudo, esses dias serão menos maus do que com outros líderes.
Símbolo de tudo isto, a 5 de Outubro de 2010 a III República não tinha nada a que pudesse chamar seu para inaugurar: as mais emblemáticas das escolas agora recuperadas nasceram durante os Governos de Salazar e Caetano. E sobretudo a obra que ficará indissociavelmente ligada a este dia 5 de Outubro de 2010, o Centro de Investigação da Fundação Champalimaud, nasceu da dádiva de alguém, António Champalimaud, com quem a República portuguesa manteve sempre uma relação conflituosa, cuja colecção de arte, ao contrário da de Joe Berardo, não foi considerada suficientemente interessante para ser adquirida, mesmo numa ínfima parte, pelo Estado português e cujo nome nunca pareceu interessante às comissões de toponímia das autarquias portuguesas, pois se em Portugal existe algum atalho, viela, avenida, rua, praça, praceta, azinhaga, largo, impasse ou beco chamado António Champalimaud deve ser num local muito recôndito. Pelo contrário, a esmagadora maioria daqueles homens e mulheres que esta semana ocupavam os lugares reservados às individualidades no Largo do Município sabem que o mesmo não se virá a passar consigo. Bastava-lhes olhar para cima e entrever os rostos que a 5 de Outubro de 1910 fizeram História para terem a certeza que haverá sempre espaço para eles na memória desta República que mais do que ser III é magnânima e indulgente para com aqueles a que chama seus. Ensaísta

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