Pompas fúnebres
Pompas fúnebres
Público, 12.04.2008
Vasco Pulido Valente
Como qualquer arqueólogo sabe, a maneira como se tratam os mortos diz muito sobre os vivos. Já aqui falei do fascínio da cultura da imortalidade em que vivemos, pela visão crua do cadáver: um fascínio em princípio absurdo, mas no fundo inteiramente lógico. Agora aparece em Portugal, como um eco deformado e distante de Evelyn Waugh, o enterro de luxo. O primeiro serviço abriu em Elvas (para explorar o mercado espanhol) e é anunciado como um hotel de cinco estrelas, num panfleto que o DN publicou. O "complexo" da Servitur (nome da empresa) é um "espaço" rico e agradável, "onde predominam os sofás de pele e o interior de madeira" e que oferece confortos como lojas (de quê, meu Deus?), telefone, computadores, ligação à Internet e, principalmente, ecrãs de plasma (suponho que para o CSI e a A Patologista). Cá fora, uma paisagem "arranjada", com oliveiras, pequenas pedras brancas, espelhos de água, relva muito verde e "um horizonte natural a perder de vista", traz "tranquilidade e paz". Melhor ainda: as crianças têm um sala especial com televisão, legos, PlayStation e "pinturas". Tudo isto se destina, como nota argutamente o director da Servitur, a atrair a família e os conhecimentos do "ente querido". O velório deixa de ser uma maçada e passa a ser uma festa. Pena que a Servitur não forneça também um restaurante e quartos. Se fornecesse, a morte de um "ente querido" começava com certeza a entrar no calendário social. Tanto mais que a Servitur pensou, e pensou bem, que as pessoas, não o querem aturar - ao morto, como é óbvio. Neste admirável arranjo "funerário", "o caixão nunca se cruza com os presentes", cujo convívio por isso não perturba. Circula para a capela e o crematório por "um corredor de apoio", estritamente reservado a funcionários. Mesmo no velório, o morto fica numa sala discreta, "climatizada" a cinco graus centígrados e com paredes de vidro, onde a assistência só entra se lhe apetecer. E na Sala da Última Despedida, a do crematório, um vidro "fosco" põe a operação numa discreta penumbra. Nada deve abalar o repouso dos vivos. Apenas, para almas de uma delicadeza rara ou de irreprimível inclinação turística, a Servitur fabrica diamantes com os cabelos do "ente querido" em várias cores de requintado gosto (âmbar, amarelo canário, verde e azul). Com esta extraordinária sofisticação, a Servitur transformou a morte - pelo menos, do próximo - num acontecimento banal. A morte da Servitur é o retrato da dessacralização da vida.
Público, 12.04.2008
Vasco Pulido Valente
Como qualquer arqueólogo sabe, a maneira como se tratam os mortos diz muito sobre os vivos. Já aqui falei do fascínio da cultura da imortalidade em que vivemos, pela visão crua do cadáver: um fascínio em princípio absurdo, mas no fundo inteiramente lógico. Agora aparece em Portugal, como um eco deformado e distante de Evelyn Waugh, o enterro de luxo. O primeiro serviço abriu em Elvas (para explorar o mercado espanhol) e é anunciado como um hotel de cinco estrelas, num panfleto que o DN publicou. O "complexo" da Servitur (nome da empresa) é um "espaço" rico e agradável, "onde predominam os sofás de pele e o interior de madeira" e que oferece confortos como lojas (de quê, meu Deus?), telefone, computadores, ligação à Internet e, principalmente, ecrãs de plasma (suponho que para o CSI e a A Patologista). Cá fora, uma paisagem "arranjada", com oliveiras, pequenas pedras brancas, espelhos de água, relva muito verde e "um horizonte natural a perder de vista", traz "tranquilidade e paz". Melhor ainda: as crianças têm um sala especial com televisão, legos, PlayStation e "pinturas". Tudo isto se destina, como nota argutamente o director da Servitur, a atrair a família e os conhecimentos do "ente querido". O velório deixa de ser uma maçada e passa a ser uma festa. Pena que a Servitur não forneça também um restaurante e quartos. Se fornecesse, a morte de um "ente querido" começava com certeza a entrar no calendário social. Tanto mais que a Servitur pensou, e pensou bem, que as pessoas, não o querem aturar - ao morto, como é óbvio. Neste admirável arranjo "funerário", "o caixão nunca se cruza com os presentes", cujo convívio por isso não perturba. Circula para a capela e o crematório por "um corredor de apoio", estritamente reservado a funcionários. Mesmo no velório, o morto fica numa sala discreta, "climatizada" a cinco graus centígrados e com paredes de vidro, onde a assistência só entra se lhe apetecer. E na Sala da Última Despedida, a do crematório, um vidro "fosco" põe a operação numa discreta penumbra. Nada deve abalar o repouso dos vivos. Apenas, para almas de uma delicadeza rara ou de irreprimível inclinação turística, a Servitur fabrica diamantes com os cabelos do "ente querido" em várias cores de requintado gosto (âmbar, amarelo canário, verde e azul). Com esta extraordinária sofisticação, a Servitur transformou a morte - pelo menos, do próximo - num acontecimento banal. A morte da Servitur é o retrato da dessacralização da vida.
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