O massacre dos cristãos-novos, Pedro Picoito, Cartas ao Director, Publico, 080426
O massacre dos cristãos-novos
A última crónica de Rui Tavares, sobre a inauguração do monumento em memória do massacre dos cristãos-novos de Lisboa em 1506, continha três imprecisões históricas na seguinte frase: "Foi o pior momento da história da Lisboa portuguesa (talvez apenas superado pela própria conquista da cidade, quando os cruzados passaram a fio de espada muçulmanos, judeus e cristãos que viviam dentro da cerca moura)."Não contesto a justiça da homenagem, embora dispense o paternalismo de quem se sente capaz de decidir quais foram os melhores e os piores momentos da história de Lisboa - ou outra qualquer. O que contesto seguramente é que se possa corrigir os erros do passado escrevendo erros sobre o passado.Em primeiro lugar, nem as fontes islâmicas nem as cristãs nos dão conta da presença de judeus em Lisboa em 1147, ainda que essa presença seja muito provável. Como lembra a historiadora Maria José Ferro, só no reinado de D. Afonso III as fontes nos permitem afirmar com toda a certeza a existência de uma judiaria em Lisboa.Em segundo lugar, os cristãos que viviam na Lisboa islâmica, também chamados moçárabes, não habitavam no interior da muralha, a não ser durante o cerco. Em tempo de paz, tinham um bairro próprio no exterior, que os arqueólogos José Luís de Matos e Manuel Real sugerem ter-se situado na encosta entre Santa Maria de Alcamim (actual Igreja de S. Cristóvão) e o espaço que é hoje a Praça da Figueira.Em terceiro lugar, e ao contrário de um teimoso lugar-comum cujas origens são óbvias, a rendição da cidade aos cristãos não foi acompanha pelo massacre que Rui Tavares refere. A rendição foi negociada e os vencedores deram aos vencidos, qualquer que fosse a sua religião, três dias para abandonar a cidade, o que muitos fizeram. É claro que no saque que se seguiu foram cometidos muitos excessos (aliás, narrados pela principal fonte dos acontecimentos, a célebre obra De Expugnatione Lyxbonensi, recentemente traduzida e editada por Aires Nascimento com o título A Conquista de Lisboa aos Mouros. Relato de Um Cruzado), mas as notícias de tantas mortes são talvez exageradas.
Pedro Picoito
investigador do Instituto de Estudos Medievais da UNL
Email: cartasdirector@publico.pt
A última crónica de Rui Tavares, sobre a inauguração do monumento em memória do massacre dos cristãos-novos de Lisboa em 1506, continha três imprecisões históricas na seguinte frase: "Foi o pior momento da história da Lisboa portuguesa (talvez apenas superado pela própria conquista da cidade, quando os cruzados passaram a fio de espada muçulmanos, judeus e cristãos que viviam dentro da cerca moura)."Não contesto a justiça da homenagem, embora dispense o paternalismo de quem se sente capaz de decidir quais foram os melhores e os piores momentos da história de Lisboa - ou outra qualquer. O que contesto seguramente é que se possa corrigir os erros do passado escrevendo erros sobre o passado.Em primeiro lugar, nem as fontes islâmicas nem as cristãs nos dão conta da presença de judeus em Lisboa em 1147, ainda que essa presença seja muito provável. Como lembra a historiadora Maria José Ferro, só no reinado de D. Afonso III as fontes nos permitem afirmar com toda a certeza a existência de uma judiaria em Lisboa.Em segundo lugar, os cristãos que viviam na Lisboa islâmica, também chamados moçárabes, não habitavam no interior da muralha, a não ser durante o cerco. Em tempo de paz, tinham um bairro próprio no exterior, que os arqueólogos José Luís de Matos e Manuel Real sugerem ter-se situado na encosta entre Santa Maria de Alcamim (actual Igreja de S. Cristóvão) e o espaço que é hoje a Praça da Figueira.Em terceiro lugar, e ao contrário de um teimoso lugar-comum cujas origens são óbvias, a rendição da cidade aos cristãos não foi acompanha pelo massacre que Rui Tavares refere. A rendição foi negociada e os vencedores deram aos vencidos, qualquer que fosse a sua religião, três dias para abandonar a cidade, o que muitos fizeram. É claro que no saque que se seguiu foram cometidos muitos excessos (aliás, narrados pela principal fonte dos acontecimentos, a célebre obra De Expugnatione Lyxbonensi, recentemente traduzida e editada por Aires Nascimento com o título A Conquista de Lisboa aos Mouros. Relato de Um Cruzado), mas as notícias de tantas mortes são talvez exageradas.
Pedro Picoito
investigador do Instituto de Estudos Medievais da UNL
Email: cartasdirector@publico.pt
Comentários