Família, Afectos e Deveres, Pedro Vaz Patto
FAMÍLIA, AFECTOS E DEVERES
O Partido Socialista apresentou na Assembleia da República um Projecto de Lei que altera significativamente os princípios que norteiam o regime jurídico-civil do casamento e do divórcio. Não vai tão longe, esse Projecto, como um outro apresentado (e já rejeitado) pelo Bloco de Esquerda, que instituía o chamado divórcio a pedido, isto é, a possibilidade de qualquer dos cônjuges requerer o divórcio a todo o tempo, contra a vontade do outro, independentemente dos motivos e mesmo que tenha sido ele a violar (mais ou menos gravemente) os deveres conjugais. No entanto, ao reduzir para um ano (um prazo que começou por estar fixado nos seis anos e, segundo a lei vigente, é actualmente de três) a duração da separação de facto que pode ser condição única desse divórcio unilateral, não se afasta muito, no seu princípio e nas suas consequências, de um sistema de divórcio a pedido. Por outro lado, elimina-se o instituto do divórcio litigioso e a necessidade de apuramento da culpa de algum dos cônjuges, de saber qual deles violou, e em que medida, os seus deveres conjugais. Na palavra de um dos principais deputados proponentes, o casamento deve assentar no afecto, não nos deveres. Para o dissolver, basta que termine o afecto (circunstância de que são sintoma determinados factos objectivos), não importa apurar quem violou os seus deveres conjugais.
Mas importa saber se é possível conceber, sem o descaracterizar, o casamento sem referência a um conjunto de deveres (de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência) que assumem relevo jurídico, um relevo que é específico e distinto de outros deveres jurídicos, mas que não pode ser ignorado e desprovido de quaisquer consequências. Não, tal não é possível, sob pena de se confundir o casamento e a união de facto. Se a qualquer momento (ou – o que não é muito diferente – decorrido apenas um ano de separação de facto) e independentemente dos motivos, pode ser dissolvido um casamento por qualquer dos cônjuges, quase nenhuma diferença haverá entre estar casado e não estar.
Compreende-se a intenção de limitar os conflitos, as agruras e os dramas de um divórcio litigioso. É isso que justifica o propósito do legislador que, de há muito, incita o juiz e as partes à conversão do divórcio litigioso em divórcio por mútuo consentimento. Mas, se o casamento assenta num conjunto de deveres, e se é a violação de algum desses deveres que conduz à ruptura, não me parece que possa negar-se a qualquer dos cônjuges o direito de obter do tribunal a declaração solene dessa violação, com consequências em vários planos, que impeçam que o divórcio se traduza num benefício para o “infractor”. E, por outro lado, se foi o cônjuge que requer o divórcio contra a vontade do outro a violar os seus deveres conjugais, não deveria essa pretensão ser facilmente alcançada (e o Projecto permite-o desde que se verifica uma separação de facto por um ano), sob pena de, também deste modo, se beneficiar o “infractor”. Ao negar a primeira dessas possibilidades e ao permitir esta segunda, o Projecto não está, na verdade, a dar relevo aos deveres conjugais, mas apenas à verificação objectiva de que o afecto cessou.
O casamento e a família não podem assentar num sentimento volátil e passageiro, sujeito à rápida e inevitável usura do tempo. Afecto e dever não estão em contradição. O afecto, por si só, não resiste à usura do tempo se não for alimentado e cultivado, como uma planta que definha se não for regada. E o afecto é alimentado através de gestos de amor quotidianos, um amor oblativo, um amor-doação, não puramente passivo (como o simples sentimento, que de nós nada exige), mas que envolve o esforço e a vontade (trata-se de querer o bem do outro), a entrega, a dedicação, a superação do egoísmo, e até o sacrifício e o perdão. Só com este propósito e esta postura podem ser superadas as inevitáveis dificuldades da convivência conjugal. E os deveres conjugais são expressão e corolário deste propósito.
As pessoas são livres de optar por uma convivência assente exclusivamente na espontaneidade dos afectos e são livres de optar por viver em união de facto. Mas a família como núcleo fundamental da sociedade, que garante a sua continuidade e renovação através da geração de novas vidas, não pode assentar num sentimento volátil e passageiro, tem de assentar num compromisso duradouro. Ninguém decide, de forma consciente e responsável, gerar novas vidas sem a garantia desse compromisso duradouro, se estiver sujeito ao risco de o outro progenitor a qualquer momento o abandonar (a abandonar – o abandono da mulher é a situação mais frequente) porque o afecto se esvaneceu, ou passou a dirigir-se a outra pessoa, e tranquilamente podem ignorar-se os deveres, em nome do superior predomínio dos afectos (porque «al cuor non si commanda» - não se manda no coração).
È por isso que o Estado e a sociedade devem reconhecer, promover e valorizar a família fundada no casamento. Não é justo que a trate como qualquer outra forma de convivência, como vem sucedendo. E como virá a suceder ainda mais se o próprio casamento for descaracterizado, se a facilidade com que se dissolve tornar irrelevante estar casado e não estar.
Se a família, que representa o núcleo fundamental da sociedade, não assentar na assunção de deveres, de deveres dos cônjuges entre si, dos pais para como os filhos e dos filhos para como os pais, também não é possível construir uma sociedade verdadeiramente solidária. Como já várias vezes se disse, a família é a primeira escola de solidariedade. «Como a família, assim a sociedade» - propôs um dia Chiara Lubich, para que os valores típicos da família impregnem todos os âmbitos da vida social. O conhecido politólogo norte-americano afirmou numa entrevista ao jornal italiano Avvenire (de 22 de Outubro de 2005) que é um erro das correntes de pensamento tidas por progressistas ou de “esquerda” (corrente onde ele próprio se integra) a desvalorização da família, pois esta é «um pequeno Estado social (“welfare”) onde se aprende a ser altruístas», um «lugar de diálogo onde no qual nascem solidariedades que depois se alargam à sociedade». E a solidariedade (como a família) não assenta apenas no afecto, mas também nos deveres, em deveres de solidariedade. Não distingue entre simpático e antipático, entre pessoas a quem nos ligam laços de afinidade (eventualmente traduzidos em afectos) étnica, cultural, social ou ideológica, e pessoas a quem não nos ligam tais laços.
A indisciplina escolar e a delinquência juvenil, de que hoje tanto se fala, têm as suas raízes mais profundas em falhas e omissões da família, no plano dos afectos, mas também no do sentido do dever. Perante essas falhas e omissões, de pouco serve o reforço de medidas disciplinares ou penais. Um recente relatório da UNICEF ligava os problemas da juventude do Reino Unido, com as taxas mais elevadas da Europa no que se refere à toxicodependência, ao alcoolismo, à delinquência juvenil e à gravidez na adolescência, à crise da família, traduzida no elevado número de divórcios e de famílias monoparentais (ver Avvenire, 5/4/2008).
Dir-se-à que não tem sentido impor a alguém os laços jurídicos do casamento quando o afecto se extinguiu e a situação é irreversível, que de pouco servem tais vínculos em termos práticos. Mas quando se dá cobertura jurídica à conduta de quem viola os seus deveres conjugais, encarando com indiferença essa violação e facilitando ao máximo o divórcio que nela tem a sua origem, o sinal e a mensagem cultural que daí decorrem não podem deixar de produzir os seu efeitos nocivos. É este plano cultural que está em jogo (mais do que o número de divórcios litigiosos, que são uma percentagem diminuta dos divórcios) e que faz com esta questão seja para os proponentes uma “bandeira ideológica”. Esse plano cultural situa-se, claramente, muito para além do ordenamento jurídico e da intervenção do Estado. Mas tal não significa que as alterações legislativas propostas, pela mensagem cultural que encerram, não tenham a máxima relevância.
Facilitar ao máximo o divórcio não pode deixar de ser entendido como uma mensagem cultural de banalização e desvalorização do casamento e é natural que isso se traduza no aumento do número de divórcios. É a esse aumento, de forma exponencial, que se tem assistido em Espanha no ainda curto período de vigência da reforma do Governo de Zapatero que instituiu o divórcio a pedido (a quem alguns passaram a chamar divórcio expresso). No contexto europeu, o número de divórcios cresceu 50% nos últimos vinte e cinco anos e hoje, em média, um em cada dois casamentos termina em divórcio. Embora Portugal se situe ainda abaixo dessa média, dela se vai aproximando cada vez mais, e a taxa de crescimento do número de divórcios é, entre nós, das maiores da Europa (no referido período mais do que duplicou). Será conveniente, sob algum ponto de vista, incrementar esse número ainda mais? Ou teremos que esperar pela geração seguinte, para só então (quando a situação se aproximar do irremediável) lamentarmos os efeitos nocivos dos constantes ataques à estabilidade e coesão da família?
Pedro Vaz Patto
O Partido Socialista apresentou na Assembleia da República um Projecto de Lei que altera significativamente os princípios que norteiam o regime jurídico-civil do casamento e do divórcio. Não vai tão longe, esse Projecto, como um outro apresentado (e já rejeitado) pelo Bloco de Esquerda, que instituía o chamado divórcio a pedido, isto é, a possibilidade de qualquer dos cônjuges requerer o divórcio a todo o tempo, contra a vontade do outro, independentemente dos motivos e mesmo que tenha sido ele a violar (mais ou menos gravemente) os deveres conjugais. No entanto, ao reduzir para um ano (um prazo que começou por estar fixado nos seis anos e, segundo a lei vigente, é actualmente de três) a duração da separação de facto que pode ser condição única desse divórcio unilateral, não se afasta muito, no seu princípio e nas suas consequências, de um sistema de divórcio a pedido. Por outro lado, elimina-se o instituto do divórcio litigioso e a necessidade de apuramento da culpa de algum dos cônjuges, de saber qual deles violou, e em que medida, os seus deveres conjugais. Na palavra de um dos principais deputados proponentes, o casamento deve assentar no afecto, não nos deveres. Para o dissolver, basta que termine o afecto (circunstância de que são sintoma determinados factos objectivos), não importa apurar quem violou os seus deveres conjugais.
Mas importa saber se é possível conceber, sem o descaracterizar, o casamento sem referência a um conjunto de deveres (de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência) que assumem relevo jurídico, um relevo que é específico e distinto de outros deveres jurídicos, mas que não pode ser ignorado e desprovido de quaisquer consequências. Não, tal não é possível, sob pena de se confundir o casamento e a união de facto. Se a qualquer momento (ou – o que não é muito diferente – decorrido apenas um ano de separação de facto) e independentemente dos motivos, pode ser dissolvido um casamento por qualquer dos cônjuges, quase nenhuma diferença haverá entre estar casado e não estar.
Compreende-se a intenção de limitar os conflitos, as agruras e os dramas de um divórcio litigioso. É isso que justifica o propósito do legislador que, de há muito, incita o juiz e as partes à conversão do divórcio litigioso em divórcio por mútuo consentimento. Mas, se o casamento assenta num conjunto de deveres, e se é a violação de algum desses deveres que conduz à ruptura, não me parece que possa negar-se a qualquer dos cônjuges o direito de obter do tribunal a declaração solene dessa violação, com consequências em vários planos, que impeçam que o divórcio se traduza num benefício para o “infractor”. E, por outro lado, se foi o cônjuge que requer o divórcio contra a vontade do outro a violar os seus deveres conjugais, não deveria essa pretensão ser facilmente alcançada (e o Projecto permite-o desde que se verifica uma separação de facto por um ano), sob pena de, também deste modo, se beneficiar o “infractor”. Ao negar a primeira dessas possibilidades e ao permitir esta segunda, o Projecto não está, na verdade, a dar relevo aos deveres conjugais, mas apenas à verificação objectiva de que o afecto cessou.
O casamento e a família não podem assentar num sentimento volátil e passageiro, sujeito à rápida e inevitável usura do tempo. Afecto e dever não estão em contradição. O afecto, por si só, não resiste à usura do tempo se não for alimentado e cultivado, como uma planta que definha se não for regada. E o afecto é alimentado através de gestos de amor quotidianos, um amor oblativo, um amor-doação, não puramente passivo (como o simples sentimento, que de nós nada exige), mas que envolve o esforço e a vontade (trata-se de querer o bem do outro), a entrega, a dedicação, a superação do egoísmo, e até o sacrifício e o perdão. Só com este propósito e esta postura podem ser superadas as inevitáveis dificuldades da convivência conjugal. E os deveres conjugais são expressão e corolário deste propósito.
As pessoas são livres de optar por uma convivência assente exclusivamente na espontaneidade dos afectos e são livres de optar por viver em união de facto. Mas a família como núcleo fundamental da sociedade, que garante a sua continuidade e renovação através da geração de novas vidas, não pode assentar num sentimento volátil e passageiro, tem de assentar num compromisso duradouro. Ninguém decide, de forma consciente e responsável, gerar novas vidas sem a garantia desse compromisso duradouro, se estiver sujeito ao risco de o outro progenitor a qualquer momento o abandonar (a abandonar – o abandono da mulher é a situação mais frequente) porque o afecto se esvaneceu, ou passou a dirigir-se a outra pessoa, e tranquilamente podem ignorar-se os deveres, em nome do superior predomínio dos afectos (porque «al cuor non si commanda» - não se manda no coração).
È por isso que o Estado e a sociedade devem reconhecer, promover e valorizar a família fundada no casamento. Não é justo que a trate como qualquer outra forma de convivência, como vem sucedendo. E como virá a suceder ainda mais se o próprio casamento for descaracterizado, se a facilidade com que se dissolve tornar irrelevante estar casado e não estar.
Se a família, que representa o núcleo fundamental da sociedade, não assentar na assunção de deveres, de deveres dos cônjuges entre si, dos pais para como os filhos e dos filhos para como os pais, também não é possível construir uma sociedade verdadeiramente solidária. Como já várias vezes se disse, a família é a primeira escola de solidariedade. «Como a família, assim a sociedade» - propôs um dia Chiara Lubich, para que os valores típicos da família impregnem todos os âmbitos da vida social. O conhecido politólogo norte-americano afirmou numa entrevista ao jornal italiano Avvenire (de 22 de Outubro de 2005) que é um erro das correntes de pensamento tidas por progressistas ou de “esquerda” (corrente onde ele próprio se integra) a desvalorização da família, pois esta é «um pequeno Estado social (“welfare”) onde se aprende a ser altruístas», um «lugar de diálogo onde no qual nascem solidariedades que depois se alargam à sociedade». E a solidariedade (como a família) não assenta apenas no afecto, mas também nos deveres, em deveres de solidariedade. Não distingue entre simpático e antipático, entre pessoas a quem nos ligam laços de afinidade (eventualmente traduzidos em afectos) étnica, cultural, social ou ideológica, e pessoas a quem não nos ligam tais laços.
A indisciplina escolar e a delinquência juvenil, de que hoje tanto se fala, têm as suas raízes mais profundas em falhas e omissões da família, no plano dos afectos, mas também no do sentido do dever. Perante essas falhas e omissões, de pouco serve o reforço de medidas disciplinares ou penais. Um recente relatório da UNICEF ligava os problemas da juventude do Reino Unido, com as taxas mais elevadas da Europa no que se refere à toxicodependência, ao alcoolismo, à delinquência juvenil e à gravidez na adolescência, à crise da família, traduzida no elevado número de divórcios e de famílias monoparentais (ver Avvenire, 5/4/2008).
Dir-se-à que não tem sentido impor a alguém os laços jurídicos do casamento quando o afecto se extinguiu e a situação é irreversível, que de pouco servem tais vínculos em termos práticos. Mas quando se dá cobertura jurídica à conduta de quem viola os seus deveres conjugais, encarando com indiferença essa violação e facilitando ao máximo o divórcio que nela tem a sua origem, o sinal e a mensagem cultural que daí decorrem não podem deixar de produzir os seu efeitos nocivos. É este plano cultural que está em jogo (mais do que o número de divórcios litigiosos, que são uma percentagem diminuta dos divórcios) e que faz com esta questão seja para os proponentes uma “bandeira ideológica”. Esse plano cultural situa-se, claramente, muito para além do ordenamento jurídico e da intervenção do Estado. Mas tal não significa que as alterações legislativas propostas, pela mensagem cultural que encerram, não tenham a máxima relevância.
Facilitar ao máximo o divórcio não pode deixar de ser entendido como uma mensagem cultural de banalização e desvalorização do casamento e é natural que isso se traduza no aumento do número de divórcios. É a esse aumento, de forma exponencial, que se tem assistido em Espanha no ainda curto período de vigência da reforma do Governo de Zapatero que instituiu o divórcio a pedido (a quem alguns passaram a chamar divórcio expresso). No contexto europeu, o número de divórcios cresceu 50% nos últimos vinte e cinco anos e hoje, em média, um em cada dois casamentos termina em divórcio. Embora Portugal se situe ainda abaixo dessa média, dela se vai aproximando cada vez mais, e a taxa de crescimento do número de divórcios é, entre nós, das maiores da Europa (no referido período mais do que duplicou). Será conveniente, sob algum ponto de vista, incrementar esse número ainda mais? Ou teremos que esperar pela geração seguinte, para só então (quando a situação se aproximar do irremediável) lamentarmos os efeitos nocivos dos constantes ataques à estabilidade e coesão da família?
Pedro Vaz Patto
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