Uma tragédia escolhida por nós
HELENA GARRIDO OBSERVADOR 19.10.2017
António Costa é responsável por políticas que queremos e por isso a tragédia dos incêndios é também um peso para a nossa consciência. Fomos nós que escolhemos abandonar aquelas pessoas.
A realidade é violenta, dolorosa, indisfarçável. Mais de cem portugueses morreram porque não conseguimos ser exigentes com os nossos governantes. Deixamo-nos levar pela propaganda e pelo eleitoralismo, pelo mais dinheiro no bolso sem nos perguntarmos como está isso a ser possível. Aquelas pessoas que vimos entregues a si próprias porque, como já muitos disseram, o Estado falhou na sua função mais básica deviam ser uma vergonha para todos nós.
Sim, há uns que têm mais responsabilidade do que outros. Sem dúvida que o Governo de António Costa é o primeiro e mais importante responsável. O primeiro-ministro fez-nos pagar este preço pela sua estratégia política de conquista de eleitorado e mais de cem pessoas pagaram-no com a vida. E o Presidente que há muito percebeu e só agora falou.
A tragédia podia ter sido na saúde ou nos transportes públicos – o que se passou recentemente com a Soflusa na ligação entre o Barreiro e Lisboa é um pequeno exemplo. Aconteceu com um Verão demasiado quente em cima de décadas de desordenamento e com uma Protecção Civil liderada na lógica dos empregos para os amigos e toda uma estrutura de combate aos incêndios sem dinheiro.
Hoje só não estamos a noticiar a falta de dinheiro dos serviços públicos porque os funcionários não falam por medo de perder o emprego e o PCP e o Bloco de Esquerda, que denunciavam estas situações, apoiam o Governo e, implicitamente, esta estratégia de distribuir dinheiro para ganhar votos – mesmo não o conseguindo, como se viu nas autárquicas.
O que se está a passar na nossa vida enquanto comunidade é assustadoramente preocupante. A grande massa de eleitorado urbano satisfaz-se com um bodo aos pobres, na dimensão suficiente para ir fazendo uns fins-de-semana prolongados e uns jantares fora. Dentro desse grupo merecem um tratamento especial os funcionários públicos, pela sua dimensão, e os pensionistas, com especial relevo para os que ganham mais e têm acesso ao espaço público. A estratégia é tão simples e fria quanto a de uma empresa que define um objectivo de mercado. Tudo o resto, como não faz mexer o ponteiro das vitórias eleitorais, não existe.
Os últimos orçamentos do Estado foram pensados nessa lógica. Se o país fosse uma empresa podia dizer-se que na era da troika fomos geridos pelo administrador financeiro e nestes últimos dois anos pelos responsáveis da área comercial e do marketing. Tudo o que não se vê ou que esteja protegido dos olhares externos pode ficar com menos dinheiro. E assim se faz dinheiro para acabar com os cortes dos salários da função pública, rapidamente ao mesmo tempo que se reduz o défice público.
São escolhas políticas apresentadas como uma opção pelas pessoas, pela coesão social, pelo combate à pobreza e pela promoção da igualdade. Quem o diz assume-se até como tendo o monopólio destes objectivos, como se todos os outros fossem contra valores que são (ou deviam ser) os alicerces da nossa sociedade.
O problema vem ao de cima quando tentamos ver os actos dessas palavras. É enorme a distância entre aquilo que se diz que se faz e aquilo que realmente é concretizado. A coesão social, o combate à pobreza e a promoção da igualdade limitam-se ao segmento do mercado eleitoral urbano que faz mexer o ponteiro dos votos. Os outros ficam ao abandono, como dolorosamente vimos na morte e na vida de quem esteve dentro dos incêndios do fim-de-semana.
A situação agrava-se quando as lideranças governamentais ou mesmo parlamentares são um círculo fechado onde quase todos andaram no “liceu” com quase todos, conheceram os pais ou até os avós, conviveram ao longo de anos por laços de amizade ou familiares. O seu mundo é aquele minúsculo universo de amigos e conhecidos que confundem com o país. As suas prioridades de governo da comunidade são hierarquizadas de acordo com o que conseguem ver nesse seu mundo, infantilizando os seus concidadãos.
A falta de sentido de Estado a que assistimos em plena tragédia é ainda reveladora desse círculo fechado gerador de um misto de arrogância e desespero. Não cabe na cabeça de ninguém considerar que António Costa, a ex-ministra e o seu secretário de Estado não estavam também a sofrer e queriam dizer o que disseram naquele tempo em que havia pessoas sozinhas a combaterem as chamas, algumas a morrerem e outras a fugirem até em contra-mão pelas auto-estradas. Quando Costa diz, no meio da tragédia, “não me faça rir a esta hora”, a sua ex-ministra Constança Urbano de Sousa afirma que seria mais fácil demitir-se para ter as férias que não teve ou o secretário de Estado Jorge Gomes declara que “têm de ser as próprias comunidades a ser proactivas” esqueceram-se que estavam a falar para milhões de pessoas. Não tiveram capacidade de sentir o sofrimento de quem estava a viver a tragédia e a ansiedade e dor de quem assistia a ela. Foram apanhados na ratoeira do seu mundo de declarações.
Nos duros anos da troika cortou-se despesa pública por todo o lado, sem dúvida. Vivíamos numa situação de emergência financeira em que a alternativa a esses cortes, no quadro em que estávamos, seria o colapso do Estado, ou seja, de toda a sociedade. Com a vertente financeira estabilizada e com o crescimento da economia, o Governo ficou com as mãos livres para fazer escolhas.
Este Governo escolheu gastar a margem financeira que o Estado ganhou na recuperação de rendimentos dos funcionários públicos, dos pensionistas e dos contribuintes. Esqueceu-se que também há pessoas atrás das despesas de funcionamento e de investimento do Estado. Os portugueses em geral que precisam de segurança, de justiça, de saúde, de educação, de transportes públicos.
Com essa estratégia satisfez um vasto segmento da população, o Governo ganhou popularidade e intenções de voto espelhadas nas eleições autárquicas. Simplificou-nos o mundo dividindo-o entre “os maus” do anterior Governo que queria a infelicidade de todos e os “bons”, que agora governam, que nos querem fazer felizes. Infantilizou-nos e nós aceitámos ser infantilizados.
Todos nós como sociedade estamos agora a pagar o preço dessa infantilização e da hierarquia de valores que garante sucesso eleitoral a políticas que se concentram em conquistar votos. Não é apenas António Costa que tem de pedir desculpa. Somos todos nós. Porque António Costa só fez esta política porque do alto do seu mundo sabe como nos podemos ser, como não queremos saber como foi possível de repente aparecer tanto dinheiro.
Cada vítima dos incêndios, cada pessoa que perdeu a sua casa e o seu modo de vida são também um peso que tem de estar na nossa consciência. Por não queremos saber, por não sermos exigentes, por nos deixarmos ir com papas e bolos. O Presidente da República já o tinha percebido há muito tempo, como se foi ouvindo numa ou outra palavra. É pena que só agora tenha falado para que todos percebam.
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