Carta de um pai a youtubers, tentanto não ser maçador

NUNO MARKL     FACEBOOK       31.08.2017

Em primeiro lugar, parabéns. Parabéns pelo vosso sucesso, pelo vosso empenho e dedicação, pela maneira como desbravaram fronteiras e abriram novos caminhos para aquilo a que, ainda há pouco tempo, se chamava só televisão. E sim, invejo-vos. Vocês têm uma ferramenta criativa extraordinária com a qual eu só podia sonhar, quando tinha a vossa idade. O meu YouTube chamava-se Sony-Camcorder-a-gravar-coisas-numa-cassete-que-depois-enviamos-para-pessoas-como-o-Herman-a-ver-se-ele-responde-alguma-coisa. Tive, de facto, a sorte de acabar a escrever para o Herman em programas como Herman Enciclopédia, mas ele nunca chegou a ver as cassetes que, anos antes, lhe tinha enviado. Precisei de gastar alguns anos da minha vida a dar uma volta maior - um curso de jornalismo, um estágio como jornalista a tentar convencer os chefes que eu poderia era dizer coisas espirituosas em vez de ir a conferências de imprensa, o dia em que, finalmente, lá lhes mostrei que escrevia umas piadas giras para rádio, o momento em que o Nuno Artur Silva, das Produções Fictícias, ouviu essas piadas e me deu trabalho a escrever para o Herman, o momento em que ganhei coragem para começar a escrever para mim... Adorei cada minuto dessa volta maior, mas teria adorado que já houvesse YouTube para a volta ser, eventualmente, mais pequena. O YouTube é uma montra espectacular de talento e potencial. E, mais do que isso, uma rampa para sucesso rápido. E poder.

Vocês têm o poder. Grandes empresas contam convosco para publicidade, milhões de pessoas acompanham todos os dias, a toda a hora, aquilo que vocês têm para oferecer e que é muito: essa é a vossa vida e a vossa profissão. E não é surpresa nenhuma para vocês - grande parte do vosso enorme público são crianças. Como o meu filho Pedro, de 8 anos.

Quando eu tinha 8 anos, tudo o que eu tinha era dois canais, brinquedos e livros. Sei o que estarão a pensar: "Que careta". (Usa-se "careta" hoje em dia, ou já é careta?) Talvez seja careta ou (inserir aqui a palavra de hoje para careta) mas era muito fixe (ainda se usa "fixe"?). Conseguíamos divertir-nos à grande, aprender alguma coisa e éramos estimulados a criar. Tínhamos menos coisas, éramos mais atentos e dedicados a cada uma delas. Não estou a dizer que fosse melhor - mas hoje em dia a quantidade de ofertas e estímulos para os miúdos é torrencial. E nessa torrente, vocês deveriam estar gratos - e suponho que estejam - pela fidelidade com que pessoas como o meu filho vos seguem e adoram. Vocês são novos heróis. E, nunca é demais frisar, vocês têm poder. 

E esta é a altura em que cito o grande filósofo Stan Lee, criador de Homem-Aranha: "Com grande poder, vem grande responsabilidade". A vida é divertida e sim, ri-me quando o meu filho me mostrou as partidas que andaram a fazer uns aos outros com uma tarântula telecomandada. Acho só - e isto pode ter a ver com o facto de ter 46 anos - que talvez gritem demais. Vocês gritam muito facilmente com muita coisa. O meu filho explicou-me: "Eles assustam-se muito com tudo". Certo, é capaz de ser uma coisa geracional, talvez tenha a ver com o estado de alarme do mundo moderno. Mas são gritos, muitos. Seja como for, cada um é como cada qual e não quero maçar ninguém com conversa de idoso sobre barulho.

O que me preocupa mais é quando esses gritos - como aconteceu ontem - são acompanhados de exclamações tais como "filho da puta! Caralho!". Longe de mim ser um moralista de merda - afinal de contas sou co-criador de uma coisa que também está no YouTube chamada Uma Nêspera no Cu. Mas a Nêspera é um programa para adultos - sabemos para quem falamos quando dizemos as tenebrosas alarvidades que dizemos, da mesma forma que vocês sabem para quem falam, quando dizem as alarvidades que dizem: para miúdos de 8 anos, como o meu filho Pedro. Ou com menos ainda. E sim, hoje em dia eles aprendem tudo na escola, é um facto. Mas, foda-se - perdão: porra - acho que não vem mal nenhum ao mundo se miúdos de 8 anos puderem ser miúdos por mais um bocadinho e tentar atrasar o gandulo que há neles.

Sei também que graças a experiências vossas com o "sobrenatural", o meu filho teve, várias vezes insónias, convencido de que assombrações existem e não apenas na mansão dos YouTubers. Quando vocês asseguram, por exemplo, que a Maria Sangrenta faz malandrices na escuridão da casa de banho às 3 da madrugada, e fazem-no de maneira divertida - sem dúvida - mas assegurando, sem aparente ironia, a existência de fantasmagoria variada a miúdos pequenos, isso pode ter um impacto algo diferente daquele que os clássicos do terror do meu tempo tinham. Havia um gozo especial em assustarmo-nos com coisas que sabíamos que eram a fingir. O vosso público infantil tem tempo para descobrir os grandes filmes de horror hardcore, em vez de ficarem já convencidos de que o terror, afinal, é real. 

Outra coisa que o meu filho aprendeu convosco é que é fácil comprar um carro de luxo. Miúdos adoram carros com pinta - mas talvez haja outra maneira de os mostrar que não ostentá-los como objectivo fácil de vida. "De certeza que lhe emprestaram", expliquei eu ao Pedro. "Não! É dele! Ele comprou!", insurgiu-se o meu filho. Não sei se compraram ou se foi empréstimo - sei que, tal como com as lendas do sobrenatural, miúdos de 8 anos têm tempo para perceber como se consegue ter um carro de luxo. Pode ser mais giro, primeiro, aprender outras coisas.

Exemplo: tentei há tempos interromper o visionamento que o meu filho estava a fazer de vídeos vossos para que fôssemos os dois levar garrafas de água ao quartel de bombeiros. Percebi que, apesar dos esforços que fazemos para que ele perceba que temos de ser uns para os outros, ele preferia ali, naquele momento, ser um para ele - não pretendia levantar o rabo para ajudar, preferia estar a ver os vossos vídeos. Tivemos uma discussão e acabei por quase arrastá-lo para a missão solidária - da qual ele acabou por gostar. Adoraria que, neste Verão, em vez de exibirem só a vossa piscina, vocês tivessem explicado - da maneira divertida como conseguem fazê-lo - a importância de ajudar os bombeiros. É um exemplo. É provável que a vossa alegria pudesse explicar que há associações de ajuda a humanos e animais sem tecto nem comida, que merecem ser descobertas. Talvez tenham receio que as coisas fiquem demasiado negras. Pá, vocês lidam bem com negrume, eu vi - acordam às 3 da madrugada para ir ao encontro da Maria Sangrenta! Talvez agora possam trazer a vossa luz a um tipo de negrume mais real. Quem sabe - na volta já fazem esse trabalho. Não sei, não vi todos os vossos vídeos. Se sim, façam mais. Muito mais. Conseguem decerto fazer isso sem perder o que os miúdos gostam em vocês. É provável que eles ainda fiquem a gostar mais.

Vou parar, não quero ser chato. Não quero proibir o meu filho de vos ver - mesmo apesar dos gritos de "filho da puta" e "caralho" que eu preferia que ele não ouvisse já. Sou contra proibições e a favor da liberdade. Admiro o que vocês conseguiram.

Só que, pelo meu filho e por outros, tantos outros que vos seguem, adorava que fossem mais longe do que os gritos, os gadgets e a publicidade, e pensassem no filhadamãe de poder que têm nas mãos para contribuir para um futuro francamente menos merdoso que o presente que temos no mundo.

Obrigado.

Abraço,

Nuno Markl

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