'A natureza está a reclamar o que é seu'
JOSÉ A. CARVALHO FACEBOOK 17.10.2017
"Viajei, durante os últimos dias, para apreciar e fotografar as cores das árvores na Nova Inglaterra, nordeste dos EUA. Há anos que planeava e pensava nesta viagem. O esplendor das cores de Outono é o mais bonito e pacificador espetáculo natural que jamais pude ver. Foram as árvores que motivaram a minha viagem. No regresso… as árvores do meu país desapareceram! Aterrei ao fim da madrugada de domingo para segunda. Assim que li e ouvi as primeiras notícias senti que metade do país estava em guerra: sem comunicações, sem energia, sem ajuda. Nasci no distrito de Coimbra onde sempre viveu a minha família. Não consegui contactar os meus pais durante todo o dia; nem eles nem ninguém. Não sabia onde andava o fogo; nem qual o desespero das pessoas que conheço desde miúdo. Nas redes sociais muita gente partilhava a angústia do silêncio em busca de notícias. Ao fim da noite consegui finalmente ouvir os meus pais: deslocaram-se vário quilómetros em busca de rede de telemóvel, já com as chamas menos ameaçadoras, para me tranquilizar.
Ao longo das horas li e ouvi inúmeros comentários sobre responsabilidade política nesta tragédia. Tenho evitado, neste espaço, qualquer opinião que possa cruzar-se com a minha profissão e com as minhas funções, mas desta vez quebro a regra.
1 - A Ministra deveria demitir-se ?
O que teria mudado hoje, se a Ministra da Administração Interna se tivesse demitido ontem ? Nada! Teríamos alguém novo no cargo, em plena catástrofe, a aprender regras e procedimentos, sob total pressão dos acontecimentos trágicos. Não me parece sensato.
No entanto, desta vez entendo que a ministra deveria demitir-se sim. Não pelos incêndios, mas pelos comentários totalmente inaceitáveis perante o sofrimento de tantas famílias. Acredito que esteja a ser o ano mais difícil da vida de Constança Urbano de Sousa, mas como bem recordou por exemplo o meu amigo Bento Rodrigues, “há dezenas de pessoas que nunca mais vão ter férias”. Resiliência e coragem não significam apenas manter o posto no meio do caos; a dignidade perante o sofrimento é uma atitude que me merece, sem dúvida, especial admiração. A Ministra não tem culpa das circunstâncias em que se viu envolvida. Mas as circunstâncias são, quase sempre, o que define as nossas escolhas, porque nos confrontam com aquilo que somos.
2 - Responsabilidade política
Francamente, nunca percebi como se pretende traduzir, em Portugal, responsabilidade política por demissão de funções. Interrogo-me aliás se Jorge Coelho (exemplo frequentemente invocado por se ter demitido perante a queda da ponte de Entre-os-Rios) pagou alguma “responsabilidade política” com a decisão de abandonar o governo. Foi penalizado de alguma forma ? As pontes ficaram mais seguras em função da demissão ?
Concordo que o país precisa de soluções e não de demissões, porque isso é o que todos temos feito ao longo destas décadas: demitimo-nos da maioria do território português e entregámos o interior aos mais velhos e à natureza. E a natureza está a reclamar o que é seu, perante a ausência de cuidado humano.
3 - "O que foi feito em 4 meses?”
É outra pergunta repetida. E francamente, não encontro nenhuma resposta possível para aplacar esta interrogação (legítima). Ao fim de décadas de abandono do interior, estes incêndios - menos graves e catastróficos do que aqueles que ciclicamente ocorrem noutros países - o que poderia ser feito em 4 meses? Imaginemos, por exemplo, que depois de Pedrógão Grande o estado português tinha contratado, à cautela, todos os meios aéreos disponíveis na Europa. Teríamos, por absurdo, uns mil “meios aéreos” disponíveis para atacar as chamas. Mas como ??!! Nem os aviões, nem os helicópteros (muitos ou poucos) tiveram condições para combater as chamas perante o vento, o fumo e as temperaturas. Se é verdade o que dizem os especialistas, estes fogos não se conseguem combater: o ser humano deve tentar “apenas” proteger pessoas e bens.
4 - A proteção de pessoas e bens.
É isto que, na verdade, nos choca a todos: a imensa destruição e, sobretudo, a dramática e inimaginável, inconcebível, perda de vidas. Uma centena de pessoas! Como é possível ? Os bombardeamentos em Aleppo não conseguiram provocar tantos mortos em tão pouco tempo…
Vale a pena, no entanto, tentar perceber como morreram estas pessoas. Pelo que se sabe nesta altura, a maioria delas ( tal como em Pedrógão…) morreu em acidentes rodoviários em fuga das chamas ou a caminho de um barracão agrícola no desespero de tentar salvar os seus bens. Sendo assim, interrogo-me: como se controlam as estradas em situação de catástrofe ?
Como é possível que dezenas de estradas, vias rápidas e auto-estradas, incluindo a principal estrada do país, tenham estado abertas ao trânsito, quando as chamas as tomaram de assalto, como é evidente nos vídeos que se tornaram virais nestes dois dias? Como é que se faz a monitorização desta ameaça ? Quem ordena a GNR cortar as estradas ? Como funciona a estrutura de comando da Proteção Civil ? Não sabemos! Infelizmente, palpita-me que os diretamente envolvidos também não sabem…
No dia da tragédia de Pedrógão havia dois militares da GNR de serviço em cada concelho. Quantos estiveram de serviço no domingo ? E a reagir a que informações ?
5 - Informações/ comunicações
Não entendo como é que a sigla SIRESP corresponde a uma EMPRESA que tem um contrato de prestação de serviços com o Estado. Não entendo de todo ! Uma empresa??? Não deveria ser o SIRESP o coração do serviço de proteção civil ? Aceita-se que o 112 fosse concessionado a entidades privadas ?
Não se trata, sequer, de serviços comparáveis: o 112 responde a ACIDENTES; o SIRESP deve responder a CATÁSTROFES.
6 - A culpa é dos governos
Concordo. Mas quando a culpa é de todos os governos, isso significa que a culpa é do Estado; e o Estado somos nós, cidadãos. Com esta generalização do “todos” não pretendo amnistiar ninguém. Mas porra! As profissões relacionadas com a floresta desapareceram (resineiros, cantoneiros); nas zonas florestais do país vivem, hoje em dia, populações idosas que carecem de cuidados permanentes para a sua sobrevivência e bem estar. As capacidades produtivas do interior foram ignoradas. Os descendentes (e herdeiros!) dessas pessoas idosas não sabem sequer que terrenos herdaram; e quando sabem procuram aborrecer-se o menos possível com essas minudências… eucalipto é uma boa solução; cortar mato e silvas dá trabalho, é caro e não há ninguém que o queira fazer e suspiram que “Era tão melhor que a minha família me tivesse deixado em herança uma casa na praia…”
Quem ficou a tomar conta da floresta foi a própria natureza. O que não pode levar-nos à resignação de aceitarmos esta tragédia como “natural” nem ao conforto fácil e “urbano” ( sem trocadilhos) de que ficará resolvido com uma demissão e a “responsabilidade política” da mesma.
Ao fim de 40 anos de migração para o litoral, de abandono do interior, de desprezo pela maioria do território parece-me inevitável que irá demorar tempo a corrigir o absurdo. E que todos nós, o Estado!, voltemos a olhar para o interior com a dignidade e responsabilidade que merece."
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