O demónio que nós conhecemos
Público, 2011-04-30 José Pacheco Pereira
Sócrates não é um populista que atraia pelas benesses, mas um exímio manipulador das massas que controla pelo medoNão é o primeiro desta espécie que conheço dentro dos partidos - que parecem atrair, dar palco e gostar deste tipo de personagens -, mas, na esfera pública, é talvez o caso mais exemplar desde o 25 de Abril e aquele em que o exercício do poder implica mais riscos e mais custos para Portugal. O problema com este tipo de pessoas é que o seu comportamento idiossincrático, quando associado a muito poder, e movendo-se com todo o à-vontade no palco mediático, que é o terreno ideal destas personagens, revela-se perigoso para o funcionamento normal da democracia. Sob as ordens deste homem, o país gastou dezenas de milhares de milhões de euros em programas sem preparação, escrutínio e escassos resultados em termos de custo-benefício (o Magalhães, as Novas Oportunidades, os aeroportos e TGV em estudo, etc., etc,), chegou à crise financeira mundial com uma dívida abissal, desemprego a crescer, projectos megalómanos, e uma condução política assente na arrogância e na teimosia que nos levou ao descalabro que nos fez perder os últimos restos de uma escassa soberania, e nos deixou a estender a mão como pedintes. Nunca foi um problema de optimismo versus pessimismo, nem de "puxar o país para a frente", enquanto outros o queriam "puxar para trás". Não. Foi um problema de pura vontade e determinação no erro, que levou tudo atrás para não afectar a imagem messiânica que José Sócrates tem de si próprio e que pagamos demasiado caro todas as vezes que ele pensa que a teimosia no erro apaga o erro.
Metade dos portugueses odeia este homem. A palavra é deliberadamente escolhida, porque caracteriza a intensidade da sua rejeição por bons e maus motivos, porque não há apenas os bons motivos, mas também algum corporativismo à mistura, como se passa com os professores, os únicos que o venceram até agora. A outra metade dos portugueses não o ama, com a intensidade inversa do ódio que lhe é dedicado, mas teme-o, prefere-o, porque mais vale o Diabo conhecido ao Anjo virtual, e apenas uma pequena minoria responde ao ódio com amor e entusiasmo. Sócrates não é um populista que atraia pelas benesses, mas um exímio manipulador das massas que controla pelo medo, pelos medos e pela enorme força e eficácia da sua presença mediática, pelo domínio do jogo a que há muito a mediatização reduziu a democracia. É ele que joga, que faz as regras e que decide quem ganha e como ganha e, como faz tudo que lhe é permitido, e muito lhe foi e é permitido, varre tudo à frente.
Do lado do PSD havia neste contexto um programa simples e eficaz, porque correspondia à grande força que atravessa o país, a única que até agora tem tido tradução política, difusa nos seus instrumentos, mas concentrada na sua explicitude: vamos tirar Sócrates do poder. Ponto. Claro que os puristas podem-se arrepiar com esta crueza, mas esta crueza tem o mérito de ser realista e não é desprovida de méritos políticos, se for associada a uma compreensão de por que é que é assim. E, por favor, poupem-me aos simplismo de que isto é fazer campanha ad hominem, e as proclamações morais de que o que deve haver é um choque programático e ideológico, numa campanha civilizada e bem-educada. Sócrates vai mesmo ser um primor de educação e o FMI vai mesmo deixar haver um grande choque programático entre liberais e estatistas...
Não há um problema pessoal com um homem, há um problema político com um homem, José Sócrates. Não é com o PS, transformado em marioneta, nem com o Governo, inexistente, é com José Sócrates, político. Os puristas podem dizer que este é um terreno perigoso em democracia, a pessoalização das críticas, e repetir a lenda urbana construída pelo próprio Sócrates com a colaboração de Passos Coelho e dos seus amigos, quando estavam a combater Manuela Ferreira Leite, que atribuía as razões do seu falhanço eleitoral aos "ataques pessoais a Sócrates". Tretas! O problema existe mesmo e queiram os autores da lenda no PSD ou não queiram, é exactamente a idiossincrasia do "homem" o que lhes perturba a possibilidade de terem sucesso com todas as vantagens a empurrar a seu favor. Ou será que dizer que "nunca mais podia haver reuniões a dois" e repetir hoje todos os dias que Sócrates mente, como fazem hoje os porta-vozes do PSD, não é reconhecer mesmo contra a vontade que há ali um problema que não é redutível apenas às políticas? Isso os portugueses já perceberam.
A razão por que temos hoje um problema com um homem que é um consumado e eficaz actor mediático, logo capaz de manipular vontades mesmo contra todas as evidências, remete para um problema estrutural das democracias e não para um problema de carácter subjectivo. É que o sistema espectacular dos media favorece, mais do que isso, incentiva, alimenta, estimula, faz crescer, dá poder a todos os que são eficazes dentro dele, das suas regras, dos seus produtos. Sócrates é o mais "moderno" político português e para isso não precisa de escrever na sua página do Facebook, porque a modernidade do país ainda está na televisão, onde ele próprio e as suas encenações são altamente eficazes. Eu não estou a dizer que Sócrates seja um produto da televisão, embora também seja, mas que as suas qualidades pessoais, e o modo profissional como utiliza os media, lhe permitem uma enorme vantagem sobre os seus adversários, mesmo no pior dos contextos. E que isto é um problema cada vez maior nas democracias, muito maior e mais grave em quem pensa que pode jogar o mesmo jogo empregando agências de comunicação, especialistas de marketing brasileiro, assessores de imprensa, de imagem, etc., etc. Sócrates tem isto tudo, mas tem algo mais: é melhor a jogar este jogo, muito melhor.
Há fragilidades, muitas fragilidades na personagem. Mas só se descobrem quando se percebe o que fez reviver de novo e isso foi o facto de ter sido ele mesmo a "romper", ele mesmo a "arriscar", ele mesmo a jogar tudo por tudo. Ele não andou a falar de "rupturas", mas "rompeu", precipitou a queda do seu Governo, provocou eleições e arrisca-se a tudo. Claro que não quis saber do país para nada, foi e é indiferente às consequências para Portugal da sua jonglerie, mas sabia que, ao fazê-lo, retomava a iniciativa, escolhia o terreno e varria tudo à frente. Então o problema não é o "homem"?
Historiador, deputado do PSD
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