Dias complacentes

Público 2011-05-26 Helena Matos
Seis dias. Seis casos. Seis sinais da nossa complacência

20 de Maio. O escândalo no lugar do crime. Strauss-Kahn continua a abrir noticiários. Curiosamente fala-se cada vez mais de escândalo e menos de crime. Não sei como dizê-lo de outra forma, mas há que esclarecer que um escândalo não é um crime. O escândalo depende de uma apreciação pessoal variável. Por isso, escândalos podem ser as festas de Berlusconi. Mas, como é próprio dos escândalos, essas são circunstâncias pessoais que podemos ou não aprovar, que nos podem ou não escandalizar. Que, no caso dos políticos, podem ou não determinar que votemos ou não neles. E nada mais.

Um crime é algo de muito diferente. E a violação da qual Strauss-Kahn pode estar ou não inocente é um crime. Chamar escândalo a um crime é de alguma forma torná-lo frívolo e, mais grave ainda, transformar as vítimas em parceiras de um despropósito.

21 de Maio. O acampamento da eterna juventude. É oficial: um grupo resolveu acampar no Rossio. Assim informada, olho para a planta de Lisboa com vista a escolher o melhor local para instalar aquela coisa demoníaca constituída por umas tendas de montagem fácil e desmontagem impossível que num dia de menor siso entraram na minha casa. Para o efeito, estou disposta a fazer rastas, gritar contra o capital e declarar que vou redigir um manifesto. Pois desde que uma alma se apresente nestes preparos não só passa automaticamente a ser definida como jovem como pode instalar-se sem explicações de maior onde lhe aprouver, desrespeitar até o dia de reflexão como aconteceu nas recentes eleições espanholas e eximir-se aos mil constrangimentos e taxas que inibem os demais cidadãos. Por exemplo, na Baixa de Lisboa onde este acampamento foi montado, existem licenças e taxas para montras, vitrinas, chapéus de sol, cor das toalhas de mesa nas esplanadas, tamanho das páginas onde os restaurantes imprimem os menus, ocupação do espaço público, colocação de publicidade em mobiliário urbano e fora dele, etc., etc. Tudo isso e muito mais que aqui não enumero, porque ficava sem espaço para a crónica, se aplica aos tolinhos, aqueles que acreditam não só que já têm idade para ter juízo como que têm de ganhar a vida. Para os outros, aqueles que gritam contra o sistema, não existem regras, multas, regulamentos, taxas, licenciamentos... Dadas as muitas vantagens competitivas deste último grupo, acho que vou montar barraca no Rossio, livrando-me assim das ditas tendas e do pagamento do IMI, taxa de esgotos, taxa municipal de direitos de passagem e demais impostos. No entrementes, aproveitando a existência de geradores levados pelos campistas, até posso montar uma venda solidária de tostas catalãs e por lá fico eternamente jovem até a dívida estar paga.

O que de todo pode comprometer este meu projecto é ouvir designar este ajuntamento como "Primavera Árabe". É preciso não ter qualquer noção do ridículo e da História para confundir umas performances de gente farta de viver razoavelmente em Lisboa e Madrid com aquilo que enfrentam os manifestantes em países como a Síria ou a Líbia. Mas enfim, ponho a música alta, que não pago licença de ruído, e lá ultrapassarei esse senão no acampamento da eterna juventude.

22 de Maio. As baixas alegadamente médicas. Agora, que o mundo assinala a erradicação de uma doença - a varíola - e discute se deve ou não extinguir as vacinas e as reservas do respectivo vírus, Portugal descobriu uma nova doença. Tem um nome estranho mas existe e deve ser altamente contagiosa. Chama-se "novo modelo de horário". A fazer fé nas notícias, manifestou-se neste dia 22, na cidade de Braga, onde os 18 agentes da PSP colocados nas três esquadras desta cidade estiveram todos de baixa médica, "contra o novo modelo de horário". Segundo a Associação Sindical dos Profissionais da Polícia, tratou-se de uma forma de protesto. Enfim, teremos de passar não só a definir as baixas como "alegadamente médicas" como a detalhar se são de protesto, de defesa ou contra. A partir daí, passaremos a ter a especialidade de alegada Medicina com especialização em Baixologia e Movimentos Sociais.

23 de Maio. O tabu. Uma jovem morreu num acidente durante as actividades do Dia da Defesa: quando estava a fazer slide numa unidade militar, um cabo de aço partiu-se e caiu de uma torre de cinco metros. A resposta do Exército foi exemplar: foi aberto imediatamente um inquérito, foi dado um prazo para se apurar o sucedido e oferecido apoio à família. Mas nada disso impede que quer o Dia da Defesa quer o próprio papel das Forças Armadas sejam vistos como corpos estranhos e que a morte de Ana Rita Lucas tenha aumentado ainda mais esse sentimento de incomodidade. Porque são caras e sobretudo porque não se debate o seu papel, as Forças Armadas tornaram-se quase um tabu. Não ouvimos falar delas durante os debates eleitorais e dificilmente serão referidas em campanha. Se assim continuarmos nesta ilusão de que só se pode falar das Forças Armadas como se o seu papel fosse o de uma ONG, acabaremos com os militares reduzidos à fanfarra da GNR, que sempre abrilhantam as recepções, enquanto se multiplicam os corpos policiais de intervenção especial.

24 de Maio. Da alienação. Perante o vídeo não só da agressão a uma adolescente mas também da indiferença com que alguns outros jovens assistem a essa agressão - e essa indiferença é muito mais perturbante que a agressão em si mesma -, a Procuradoria-Geral da República declarou que o Ministério Público "não tem peritos informáticos ao seu serviço capazes de detectar, em tempo útil, crimes divulgados nas redes sociais". Desconheço os meios de que o Ministério Público está dotado. Mas não só o local da agressão é facilmente identificável - mandar uns agentes ao local não é propriamente muito difícil - como, após a sua divulgação pelas televisões, rapidamente se descobriu a identidade dos envolvidos. Não sei o que se pensa na PGR quando se fazem declarações deste teor, mas recomenda-se vivamente que, na escolha do próximo PGR, se tenha em conta o factor bom senso. Coincidência ou sinal dos tempos: a família da agredida só apresentou queixa depois de a agressão se ter transformado num caso.

25 de Maio. Isto sim, é um escândalo. A propósito do anúncio pelo Governo dos dados da execução orçamental do primeiro trimestre deste ano - uma melhoria de 1.750 milhões de euros face ao período homólogo -, a Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) veio explicar que "esta aparente melhor execução da despesa reflecte apenas uma baixa execução do pagamento de juros da dívida pública, que se encontram concentrados no segundo trimestre, bem como uma baixa execução da despesa de capital".

Segundo o Diário Económico, o relatório desta unidade que funciona junto da Assembleia da República apurou que entre os pagamentos não efectuados se contam atrasos nos descontos de IRS referentes aos funcionários da GNR e PSP. Se estivéssemos perante uma empresa privada, escrevia-se: "Corrupção. Empresários não entregam IRS dos trabalhadores às Finanças" e ficava tudo mais claro, não era?

Recordo que, caso tivesse vingado a posição do Governo, não conheceríamos este relatório, pois esta unidade teria a sua actividade suspensa. Mas o dia não se esgota nas notícias sobre o escândalo destas contabilidades criativas, já que o Jornal de Negócios faz título com a notícia mais grave dos últimos tempos: "Governo confirma que pôs Segurança Social ao serviço da dívida pública". Por outras palavras, o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social está a comprar ainda mais dívida pública e pode estar a fazê-lo por pressão governamental. Dando já de barato que ninguém se indigna com o facto de a ministra do Trabalho ter desmentido com veemência há menos de dois meses que os 9,6 mil milhões do FEFSS estivessem a ser usados para socorrer a dívida pública portuguesa, o mínimo que se espera é que os sindicatos, as confederações e os partidos se pronunciem sobre esta notícia. Porque nela estão contidos não apenas os ingredientes de um escândalo mas também daquilo a que dentro de alguns anos se chamará crime. Ensaísta

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