Senhoras e senhores, respeitável público, liguem a televisão e verão algo nunca visto
Público, 2011-05-05 Helena Matos
Há largo tempo que a figura de primeiro-ministro foi substituída pela de performer de ilusionismoA comunicação ao país de José Sócrates na terça-feira à noite foi um número de ilusionismo em que nem sequer faltou o mistério da proibição da tomada de fotografias por parte de fotógrafos alheios ao gabinete do primeiro-ministro e o suspense de um ministro das Finanças esfíngico como se fosse partenaire no número das facas.
Como convém aos espectáculos de magia, no fim ouviu-se dizer que tinha corrido bem, entendendo-se aqui o bem no sentido da prestidigitação. Ou seja, sabe-se que se foi enganado, até gozado (a propósito de gozo, quem além do nosso primeiro-ministro fala de privatização da escola pública?) mas a cada actuação do artista em questão - há largo tempo que a figura de primeiro-ministro foi substituída pela de performer de ilusionismo - acaba sempre a tornar-se consensual que o número correu bem pois ninguém percebeu para onde foram as pombas, nem os coelhos, nem a mulher, nem as cartas, adereços que nas prestações deste nosso artista entrincheirado em S. Bento não são pombas, nem coelhos, nem mulher, nem cartas que desaparecem mas sim buracos orçamentais, número de desempregados, dados sobre a segurança interna, resultados efectivos da frequência das Novas Oportunidades e da distribuição de computadores Magalhães ou o balanço das operações de compra e venda do património estatal à Estamo.
Esta relação entre o ilusionista e o seu público tornou-se de tal modo indispensável ao nosso quotidiano que mal o espectáculo terminara já Francisco Assis avisava que era preciso não entrar em euforia. Qualquer criatura que não estivesse imbuída deste clima de show mágico perguntaria imediatamente onde é que pode haver euforia num país que pediu 78 mil milhões de euros, que tem impostos altos e vai aumentá-los mais ainda, que tem a maior dívida externa dos últimos 120 anos e que regista um desemprego-record. Mas nós já perdemos a noção do real. O que nos interessa é a eficácia da encenação.
No seu blogue, Henrique Raposo comparava há dias os comentários gerados por duas notícias surgidas quase em simultâneo. Uma delas dava conta da letra do hino do PSD para esta campanha, a outra relatava que 600 mil crianças tinham perdido o abono de família. Como é mais ou menos esperado, a vírgula mal colocada no hino do PSD gerou uma catadupa de comentários e afectou a imagem de Passos Coelho enquanto líder. Pelo contrário, as 600 mil crianças que perderam o abono não suscitaram grande interesse e de modo algum beliscaram a imagem sempre vitoriosa de José Sócrates. Conclui Henrique Raposo: "Aproveitar o ruído do PSD para esconder o fracasso absoluto da governação PS é uma coisa inaceitável." Mas só seria inaceitável no plano da racionalidade. Ora nós estamos no meio de uma coisa delirante que dá pelo nome de "Admirável show de José Sócrates, o ilusionista que nunca falha".
Entre 2009 e 2011 este "maior espectáculo do mundo do admirável show de José Sócrates, o ilusionista que nunca falha" passou do ambiente feérico das grandes tendas de eventos cheias de comboios de alta velocidade e aumentos à função pública para umas aparições constrangedoras que recordam precisamente aqueles circos pobres que deambulavam pelo país, sem leões nem elefantes, sem trapezistas nem bailarinas. Apenas umas famílias, umas pombas, uns cães e às vezes um burro. Mas continuavam a anunciar-se como o maior espectáculo do mundo. E o povo continuava a correr para assistir e bater palmas. E continua até porque no "Admirável show de José Sócrates, o ilusionista que nunca falha" cada um dos dez milhões de portugueses tem uma participação prevista, quanto mais não seja como partenaire contribuinte.
Comentários