Será que este país não tem emenda?
Público 2011-05-27 José Manuel Fernandes
Em Portugal a resistência à mudança e o apego a privilégios, pequenos ou grandes, condena-nos à decadênciaVamos lá ver se percebi bem, de novo. O Governo anunciou que a execução orçamental dos primeiros três meses do ano tinha sido "histórica" e que a redução do défice tinha sido tão substancial que estaríamos não só no bom caminho, como no melhor dos mundos. Alguns economistas procuraram deitar alguma água na fervura deste entusiasmo e a oposição chamou a atenção para o aumento da carga fiscal. Entretanto, como formiguinhas, os funcionários da Unidade Técnica de Apoio Orçamental (UTAO) da Assembleia procederam à análise das contas e revelaram o seu relatório esta semana (algo que o PS tinha tentado impedir que acontecesse). Para a UTAO, os resultados conseguidos só foram possíveis porque houve despesas adiadas (mas que terão de ser feitas), porque se pagaram menos juros (quando, ao longo do ano, a conta dos juros aumentará) e porque se atrasaram as devoluções do IRS. Corrigindo estas distorções conclui-se que a execução orçamental fica aquém do necessário para cumprir as metas de 2011, isto é, que ainda agora assinámos um acordo com a troika e já estamos a entrar em incumprimento. Se isto não é inquietante, não sei o que é inquietante.
Nada, aparentemente, liga estes dois casos. A não ser a realidade pegajosa em que vivemos. A não ser este nosso Portugal onde todas as referências se parecem ter diluído e já ninguém estranha o que nem devia ser aceitável. Mais exemplos, muito diversos, todos da última semana. Na prova de 9.º Ano de Físico-Química houve uma pergunta em que bastava saber contar até oito para responder correctamente. O tribunal de Portimão resolveu não levar a julgamento os únicos indiciados pelo que foi descrito como um "acto de terrorismo", a destruição de uma colheita de milho transgénico em Agosto de 2007. Quase dois meses depois de o Governo ter desmentido que estava a utilizar a Segurança Social para comprar dívida pública, aparece publicado no Diário da República um despacho de Teixeira dos Santos em que são dadas instruções nesse sentido. Ao mesmo tempo soube-se que o Governo deu ordens à Casa da Moeda para não imprimir no Diário da República as nomeações feitas para lugares intermédios da Administração Pública, nomeações que são efectivas e não dependem dessa publicação. A Procuradoria-Geral da República entendeu que a melhor forma de reagir à divulgação, no Facebook, de um vídeo em que se mostrava uma agressão a uma adolescente era dizer que "não tem peritos informáticos ao seu serviço capazes de detectar, em tempo útil, crimes divulgados nas redes sociais". Para encher um comício em Évora, o PS arrebanhou umas centenas de indianos, de paquistaneses e de africanos, alguns dos quais mal falavam português, deu-lhes farnel e T-shirts, pô-los a abanar bandeiras, disse que eram presença habitual da secção do partido da Almirante Reis e, depois, esqueceu-se de dizer aos velhinhos que lá costumam aparecer para confirmarem esta última invenção aos jornalistas. Parece que já em 2007 - antes da crise económica e financeira - havia pelo menos um estudo, entregue às Estradas de Portugal, a avisar que os projectos de concessão das novas auto-estradas eram deficitários. E enquanto se soube que a Guarda Nacional Republicana promoveu, no início deste ano, 40 novos coronéis, numa excepção às regras decididas para a função pública, tomámos conhecimento pela boca de um dirigente sindical da PSP que, em Braga, os polícias fizeram greve por via da entrega de atestados médicos falsos.
Naturalmente que estes episódios não têm todos a mesma gravidade. Longe disso. Mas todos eles, e muitos outros que também poderia ter citado, mostram como é enorme a resistência à mudança e o apego a privilégios pequenos ou grandes. Mostram também que houve uma grave degradação não só dos costumes políticos, como das práticas sociais. O que se pensava intolerável entrou na rotina do dia-a-dia. Velhos defeitos - o atavismo, a aversão aos risco, o gosto pela benesses do Estado, o corporativismo, o clientelismo esmolar, o apreço pelo Chico-esperto - tornaram-se não apenas em hábitos aceites como em virtudes louvadas nas caixas de comentários das redes sociais. E até, se bem embrulhados em palavras eruditas, em temas de campanha eleitoral.
O mundo que produz e reproduz estes episódios acabou. E acabou porque se acabou o dinheiro. Pelo que, verdadeiramente, só nos restam duas alternativas: ou mudamos mesmo de vida, como impõe o memorando da troika e disse o Presidente da República, o que implica mudar de políticas, mudar de dirigentes, mudar de hábitos e rotinas, mudar de referências sociais e culturais, e então seremos capazes de trilhar o difícil caminho da recuperação, ou... Ao contrário das aparências e do bom senso, a escolha existe, como estes episódios mostram. Trata-se de fazer de morto, de arrastar os pés, de tentar que tudo fique na mesma na esperança de passar entre os pingos da chuva, trata-se de continuar a tolerar costumes que corrompem as nossas referências morais, de tentar enganar a troika enquanto se finge que se cumpre o memorando, de continuar a chamar às mentiras meras "faltas à verdade". O resultado será o aprofundar da decadência e o empobrecimento relativo e inelutável, como aquele a que assistimos na última década. Entretanto os melhores portugueses emigrarão.
Infelizmente este país, às vezes, parece que não tem emenda. Que ainda não percebeu o difícil que vai ser continuar a ter quem nos financie - ou seja, o difícil que será cumprir o acordo. E que Portugal não se importa de rolar pela encosta abaixo, porventura a fazer companhia à Grécia. Jornalista
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