O regresso do 'Zombie' constitucional, JCdasNeves, DN 080623
João César das Neves
professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
As instituições da Europa parecem-se cada vez mais com O Regresso dos Mortos- -Vivos. A defunta Constituição Europeia, assassinada por dois referendos, voltou à vida no Tratado de Lisboa. Seguindo o princípio de "não se falar de corda em casa de enforcado", foi quase eliminada a menção referendária na ratificação. Mesmo assim, como num filme de terror rasca, a bala prateada conseguiu matar o pobre descendente do monstro. Mas não desespere. Já se notam sinais de movimento no cadáver, anunciando a continuação da série.
A União Europeia nunca foi um processo democrático, com as elites a empurrar a integração. Logo o primeiro passo, o tratado que criou o Benelux, foi assinado a 5 de Setembro de 1944 em Londres, por governos exilados de três países ocupados. Também desde o início o ridículo persegue a Europa. No cinquentenário do Tratado de Roma uma antiga dactilógrafa revelou à BBC que, devido a atraso tipográfico, o documento assinado a 25 de Março de 1957 tinha só páginas em branco sob a capa (http/news. bbc.co.uk/2/hi/europe/6483585.stm). Os dois elementos estão ligados. A urgência que tornou necessária a pequena fraude era causada pelo medo de que a crise francesa trouxesse o general De Gaulle ao poder (como faria a 30 de Novembro de 1958), o que inviabilizaria a nascente CEE. Por isso a elite enganou as massas.
Mas existe ainda outro aspecto da integração, o sucesso. A cooperação e partilha de soberania que a Europa vem ensaiando constitui uma das grandes inovações políticas do nosso tempo. Basta ver que todos os vizinhos querem entrar e todos os longínquos querem copiar.
Juntando estes três elementos - aristocracia, ilusão e sucesso - quem sai mal é a democracia, não a Europa. Um punhado de líderes engana as massas para bem delas. Este é o sistema oligárquico que vigorou com eficácia durante milénios e ainda prospera em muitas zonas. Tem dois grandes defeitos. Primeiro, contraria radicalmente a actual filosofia europeia. Segundo, como descobriram desde a Antiguidade, as elites só sobrevivem se forem boas para as massas. Os actuais regimes ocidentais são os herdeiros das revoluções que substituíram violentamente oligarquias que, esquecendo a razão dos privilégios, deixaram de beneficiar o povo.
Eis o dilema da construção europeia. Como avançar sem o impopular impulso das elites? Como existir sem o respeito das regras democráticas? Mas isto não é diferente nas questões nacionais. Em múltiplos problemas, do ambiente à diplomacia, da indústria ao desporto, os cidadãos deixam a solução a técnicos e estrategas.
Se é assim, de onde vêm as atribulações da Constituição europeia? Da mais antiga das forças políticas, o disparate. Nenhum líder europeu alguma vez suportaria tal confusão dentro do seu próprio país. Não cairia em tão patente manipulação ou não deixaria que ela fosse descoberta. Assim, a forma atabalhoada do processo manifesta a própria fragilidade. O empenho na Europa da maioria dos dirigentes é lateral e secundário, sujeito a propósitos nacionais. Outros são flagrantemente incompetentes. O resultado é a trapalhada e o embuste descarado.
Durão Barroso disse: "não há um plano B" para o chumbo irlandês ao Tratado de Lisboa (http/www. eubusiness.com/news-eu/ 208419320.63/). Após o chumbo, começou logo a falar da alternativa. Esta displicência com a verdade inspira-se num dos seus autores de juventude: "Em geral, aquilo que obtém bom resultado é correcto, e o que fracassa é incorrecto, principalmente se se trata da luta dos homens contra a natureza. Na luta social, as forças que representam a classe avançada registam por vezes fracassos, não porque elas tenham ideias falsas, mas sim porque, na correlação das forças em luta, elas são temporariamente menos poderosas do que as forças da reacção. Assim elas fracassam temporariamente mas, tarde ou cedo, acabam por triunfar.(...) Não há outro meio de fazer a prova da verdade." Pequeno Livrinho Vermelho, Citações do Presidente Mao Tsetung, cap. 22, Editorial Minerva, 1975, p.145-146).
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