Meu Santo Antoninho

António Lobo Antunes, Visão, 080603


Agora, cada vez mais, acho que uso estas crónicas como um diário, eu que nunca escrevi diários. Quer dizer, fiz um aos sete anos, quando o meu avô viajou comigo a Pádua, ao túmulo de Santo António, para a primeira comunhão. Tive uma meningite com cerca de um ano, uma infecção tuberculosa com três ou quatro e estou sinceramente convicto que Santo António me curou. Da mesma forma que esteve ao meu lado durante o cancro. Bem, fiz um diário durante a viagem de Lisboa a Pádua, que o meu pai guardou sei lá onde, e depois dediquei-me a compor livros. Aos treze ou catorze anos tinha uma obra de alto lá com o charuto. Devia ser fresca. Periodicamente atirava aquilo tudo da janela do quarto para o enorme tanque de lavar roupa do quintal, que se foi enchendo a pouco e pouco de papéis rasgados e beatas que eu fumava às escondidas. Lembro-me de fanar uma cigarrilha a um tio meu, uma coisa gigantesca, e de mamar aquilo a seguir ao pequeno-almoço, debaixo da buganvília. Parecia um rebocador: um miúdo com uma chaminé escura, espetada a meio do casco a largar nuvens. Só que em lugar de ondas flores roxas e em lugar de margem uma mesa de pedra. A cigarrilha agoniava-me mas não dava parte de fraco, a chupar com gestos importantes. Devia existir em mim, nesse tempo, um lado de desembargador. Se calhar continua a existir, só me falta arranjar a papada.
Portanto cada vez mais acho que uso estes textos como um diário, paralelo aos livros, ou como os desenhos que se fazem, quase por distracção, no canto dos manuscritos. Dantes desenhava bem com a mão esquerda. Sou canhoto. Agora sou ambidestro. Agora sou sei lá o quê: um catraio a brincar na areia; um fulano que se surpreende nos espelhos:
– Eu isto? Eu assim?
porque aquilo que o espelho mostra nada tem a ver comigo. Sou outro. Os meus livros sou eu, o que não é os livros é outro. Que outro? Um outro a reduzir-se à medida que o número de livros aumenta: por este andar desapareço. Talvez daí as feições apagadas, os gestos transparentes, admira-me que me reconheçam
– Tu
porque o tu diminuto. Este fim-de-semana estive no Algarve, em Silves. Uma biblioteca. Encontrei um sargento dos Comandos a quem cosi o olho durante uma operação no Chiúme
– Coseu-me este olho e o olho perfeito. Como costureira não fui inteiramente mau. Volta não volta, a uma esquina da vida, a guerra. Lembra-me esses cães pegajosos, insistentes, que tentam entrar pelos restaurantes dentro: expulsam-nos e regressam, numa teimosia sem fim.
– Coseu-me este olho e um abraço com trinta e tal anos de comprimento. O Chiúme era o pior buraco que conheci. Foi lá que soube do nascimento da minha filha. Chamaram-me ao rádio. Até em Silves a gaita de África, chiça. Escrevo isto, calor, sol, as folhas devagarinho lá fora, tanta luz. Que milagre, a vida. A seguir à doença o tempo de novo lento, como na infância. Isso ganhei. Não sabia que os minutos eram vastos, ricos. Foi um preço caro para aprender mas valeu a pena. Dá ideia que em certo sentido regressei ao princípio: vou tornar a fumar às escondidas na janela. O Algarve cheira a açúcar, o Alentejo pisa--me. Rebanhos de ambos os lados da estrada. Ganas de ver Beja de novo, os olhos de luz escura das mulheres do sul. Não me imagino com uma estrangeira. Uma rapariga a boiar lá em baixo na piscina do hotel, um cavalheiro gordo com um menino ao colo: agradam-me os cavalheiros gordos, têm um ar confortável, qualquer coisa de sofá até a andarem. O cavalheiro gordo entrou na água com o menino, todo ele cautelas, palavrinhas. Tive inveja da criança: nunca entraram comigo ao colo numa piscina e de repente isso doeu-me. Não me doeu grande coisa: uma feridinha de cacaracá lá atrás, na infância, onde várias feridinhas de cacaracá. Das grandes nada digo. Não se desvanecem e todavia nada digo. Caladinho, rapaz. Se for difícil de aguentar vai ao espelho, o tal que te surpreende, e sorri. Em lugar de dez flexões para tirar a barriga dez sorrisos para expulsar a amargura. O décimo custa o dobro do primeiro mas lá se vai fazendo. Ninguém na rua, estores descidos, o toldo de uma pastelaria deserta. Não devem faltar horas para a noite dado que o sol oblíquo. Ao meter a chave ao prédio um manhoso abordou-me com uma grande conversa em círculos que se apertavam e no fim dos círculos pediu-me dinheiro. Que me conhecia e tal e tal, que os tempos estão maus, que precisava de não sei quê, um paleio que não acabava, em linguagem preciosa. Achei que era uma representação razoável de um texto gasto: cinco euros. Mal a nota lhe poisou na mão sumiu-se a todo o gás. Ele, o bigode e as queixas. Impingiu-me um passado de arquiduque, abundâncias, conquistas. As mentiras divertem-me. A esta hora já comprou um palacete com os cinco euros e contratou um mordomo. Prefiro o bêbado que anda por aqui aos impulsos, ocupando o passeio todo. Da última vez que me cruzei com ele sorriu-me e anunciou, feliz
– Estou-me a cagar.
Tenho no porta-moedas um Santo António pequenino. Deu-mo uma amiga, a Fernanda. Toco-lhe e recordo-me do túmulo em Pádua. O meu avô beijou o túmulo e imitei-o. Tenho-te dado trabalho, não tenho? Um dia destes meto-me no avião e vou beijar-te outra vez.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António