O pior erro será ignorar o voto irlandês
PÚBLICO, 14.06.2008, José Manuel Fernandes
O problema dos líderes europeus é que nenhum deles é capaz de associar o Tratado de Lisboa a um novo sonho que vá para além dos que estão dados por adquiridos nestes últimos 50 anos
O único povo europeu a quem foi dado o direito de se pronunciar em referendo sobre o Tratado de Lisboa votou "não". Um "não" claro, pois não só a margem do resultado foi expressiva, como um "não" duplamente válido pois foi obtido num referendo em que o nível de participação ficou acima dos 50 por cento, um nível bem superior aos anteriores referendos.
O que esta votação provou é que é cada vez mais difícil "vender" a "Europa" aos europeus. A razão porque 99 por cento dos cidadãos europeus não se podem exprimir em referendo sobre o Tratado de Lisboa não decorre da tradição nem do direito: foi uma decisão política dos líderes europeus tomada em segredo na cimeira que fechou a presidência alemã e que pavimentou a estrada para o acordo a que se chegaria durante a presidência portuguesa. Só a Irlanda escapou a esse acordo, porque a sua Constituição obriga a que qualquer alteração constitucional seja referendada. Os irlandeses já se tinham pronunciado múltiplas vezes sobre o processo de integração europeia, mais exactamente em 1972, 1987, 1992, 1998, 2001 e 2002. Votaram sempre "sim" excepto em 2001, razão porque repetiram o referendo em 2002. E agora voltaram a votar "não", só que de forma muito mais expressiva.
Por isso, ao analisar o voto irlandês, só pode tirar-se dele as respectivas consequências, as únicas possíveis no quadro das regras ainda vigentes na União Europeia: o Tratado de Lisboa está ferido de morte. Os irlandeses não são menos do que os franceses ou os holandeses, que, quando votaram "não" ao anterior Tratado Constitucional, obrigaram à sua revisão. Dizer que são poucos, acrescentar que são mal-agradecidos ou elaborar sobre como terão sido enganados pela demagogia dos defensores do "não" é insistir no mesmo tipo de erro que tem vindo a tornar o projecto europeu invendável a boa parte das opiniões públicas.
É sabido que num referendo se utilizam sempre argumentos demagógicos, e eles não faltaram neste referendo irlandês. Mas será que também não se faz demagogia em eleições legislativas, locais ou presidenciais? Claro que se faz, e isso não é argumento para acabarmos com elas.
É sabido também que a esmagadora maioria dos irlandeses não leu o Tratado de Lisboa e não o compreende bem, só que isso também não desqualifica a qualidade do seu voto. Ou será que alguém imagina que os eleitores também lêem e compreendem os programas partidários antes de qualquer das nossas bem-estimadas eleições? Lêem tanto ou menos do que os irlandeses terão lido o Tratado que referendaram.
É também sabido que os resultados dos referendos podem ser subvertidos pelo desejo dos eleitores de enviarem uma mensagem de protesto, como se disse que aconteceu em 2005 em França. Só que isso também sucede nas eleições locais e europeias, e não é por isso que as cancelamos - sendo que, desta vez, é claro que o voto de protesto irlandês não visou o seu novo primeiro-ministro, mas essa burocracia longínqua e arrogante que dá pelo nome de "Bruxelas".
Se as leis da Irlanda impõem o voto popular, se as da Europa impõem a unanimidade de ratificações para que um Tratado entre em vigor (Tratado esse que muda essa regra...), se a Irlanda votou "não", o problema não é dos irlandeses, é da União Europeia. Qualquer "plano B" que torpedeie estas regras será mais um tiro na credibilidade do projecto europeu.
Aquilo com que os líderes europeus têm mesmo de se preocupar não é com saberem se a Europa pode ou não continuar a funcionar sem o novo Tratado, mas como é que a Europa pode funcionar quando os mecanismos da democracia europeia (que este Tratado era suposto reforçar) não são vendáveis aos eleitorados e até os líderes europeus parecem dispostos a violá-los. Esse é o nó do problema e procurar ignorá-lo descredibilizando o voto popular é enterrar a cabeça na areia.
O que todos os líderes europeus têm de entender é que os últimos referendos mostram que os eleitores, quando têm de enfrentar duas chantagens de sinais opostos - os argumentos do "não" vivem do medo do desconhecido, os do "sim" do medo de ficar fora da Europa -, por regra preferem que tudo fique como está.
O problema dos líderes europeus é que nenhum deles é capaz de associar o Tratado de Lisboa a um novo sonho que vá para além dos que estão dados por adquiridos nestes últimos 50 anos: a paz e a democracia. Pior: a nível nacional, os líderes que a Europa tem utilizam "Bruxelas" como válvula de escape para todas as suas dificuldades nestes tempos em que muitos cidadãos temem pela erosão do terceiro dos grandes sonhos da construção europeia: a prosperidade.
Muitas das primeiras reacções de ontem mostraram que há muita gente que não sabe que um "não" é apenas isso e é tudo isso: um "não".
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