A Europa não é o que era

PÚBLICO
01.06.2008, António Barreto
Retrato da semana

A crise económica e social está instalada em Portugal. E bem instalada. Não há sinais de qualquer alívio a curto prazo

Parece que foi frase feita inventada no século XIX: "Calma no Brasil, que Angola é nossa!" Verdade ou mentira, o certo é que sobrou para nós, pelo século XX adentro. Já nem se conhecia a sua verdadeira implicação, mas pronunciava-se a propósito de tudo e nada. Até que foi substituída por outra: "Deixa lá Angola, que a Europa está connosco!" As ideias são parecidas, mas só em parte. Na verdade, perante a primeira perda, a conclusão era a de um novo esforço dos portugueses, mas noutras paragens. Enquanto, diante da segunda, os portugueses se colocavam numa posição de beneficiários de ajuda e assistência.

Durante uns anos, a Europa esteve connosco. Ou antes, alguns países da Europa, designadamente a Alemanha, que nos salvaram das consequências das nossas tropelias. Até chegar a vez da Europa toda, quer dizer, da Comunidade Europeia. Mais uns anos de fartura, as ajudas vieram. Quase tudo o que vinha da Europa era bom. Dinheiros, mercados, importância, reputação e investimento. E um lugar onde os portugueses se sentiam iguais aos outros, o que parecia afastar velhos traumas e indeléveis complexos.
Nos piores momentos destas últimas décadas, e já houve vários, foi frequente pensar-se que, se não houvesse CEE ou UE, se Portugal não pertencesse ao clube, já teríamos conhecido destinos fatais: a absoluta pobreza, uma profunda recessão, desvalorizações consecutivas, golpes de Estado e novos episódios autoritários. Durante anos, a Europa salvou-nos dos nossos demónios, da irresponsabilidade crónica e da demagogia avassaladora que caracterizou quase todos os governos. Pior ainda, protegeu a nossa preguiça e a nossa incapacidade de organizar e prever. A Europa foi manta quente e abrigo, casa acolhedora para os momentos críticos de transição e adaptação.

Hoje, a situação é diferente. Tudo o que corre mal vem da Europa. Da Europa e da globalização. Ou porque as coisas são mesmo assim. Ou porque a covardia dos políticos portugueses é moeda corrente. A agricultura foi quase destruída, por causa da PAC. A frota de pesca abatida, os pescadores reciclados e o pescado apanhado por espanhóis e outros, por causa da Europa. A ASAE bate a torto e a direito, por causa da Europa. Os bancos têm lucros obscenos e os gestores têm vencimentos próprios de outras galáxias, porque as regras europeias são assim e porque o mercado está aberto. Mal suportamos a concorrência dos países de Leste, da China e demais asiáticos, por causa da Europa. O Estado não pode intervir, não tem meios legais e não recorre aos mecanismos habituais de subsídio e protecção, por causa da Europa. Mas o Estado concentrou poderes e decisões, talvez como nunca no passado, graças à Europa. Da Europa, não temos os salários, os preços dos bens de consumo, os horários de trabalho, os subsídios de desemprego, o salário mínimo, as pensões, as reformas e a prontidão dos serviços de saúde. Mas temos o imperativo de eliminar o défice e de apertar o cinto, assim como a obrigatoriedade de abrir os concursos a empresas internacionais. Espanhóis, italianos e franceses sabem proteger as suas economias e dispõem de sofisticados instrumentos de protecção ou promoção, enquanto os portugueses obedecem aos ditames europeus e não descortinam maneira de invocar o interesse nacional. A Europa já foi modelo e ambição. Hoje, para muitos portugueses, é ameaça. Excepto para os que recorrem à emigração, que, para surpresa de muitos, recomeçou como nos anos sessenta.

Por uma vez, em muito tempo, os portugueses não têm para onde olhar. Brasil, África e Europa pertencem ao passado. Com a particularidade de a Europa e o mundo terem deixado de ser fronteiras e horizontes a explorar e se terem transformado em ameaças e fontes de crise. Por uma vez, em muito tempo, os portugueses têm de contar consigo, só podem mesmo contar consigo próprios. O que, numa sociedade livre e num mundo aberto, é muito mais difícil. Habituados a contar com expedientes e bodes expiatórios e mal educados pela demagogia política, os portugueses comprazem-se em aspirar a muito mais do que podem e têm direito. Consomem mais do que lhes é permitido pelos seus rendimentos. Querem mais do que lhes autoriza a sua produtividade. Devem muito mais do que ganham num ano. Adoptaram os tiques da cultura do êxito, dos vencedores, da gente bonita e da exibição de capa cor-de--rosa. E parece não se importarem com as enormes desigualdades sociais que fazem desta sociedade um pesadelo moral e estético.

A crise económica e social está instalada em Portugal. E bem instalada. Não há sinais de qualquer alívio a curto prazo. Ninguém espera uma melhoria efectiva antes de dois ou três anos. Algumas das causas desta situação vieram de fora. A começar pelos custos dos petróleos e da energia em geral, contra cujos aumentos nem sequer a Europa soube tomar providências a tempo. Mas Portugal já estava mal, muito mal, antes deste terceiro choque do petróleo. Há praticamente oito anos que Portugal vem perdendo, em termos absolutos e relativos. A verdade é que a "nossa" crise é em geral muito superior à dos parceiros europeus. Quer isto dizer que somos os principais culpados. Desperdiçámos anos, recursos e oportunidades. Perdemos com a ditadura e a guerra. Perdemos com a revolução e a contra-revolução. Perdemos também com três décadas de facilidade e demagogia. Assim chegámos ao ponto de perceber que ninguém virá em nosso socorro, que não há mais soluções fáceis e que, de fora, não virá mão redentora. Só de nós próprios virá qualquer remédio. E isto não significa orgulho, nem raça. Muito menos talento ou história. Significa tão simplesmente estudo, persistência e organização. E, sobretudo, trabalho. Sociólogo


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