O Papa Francisco e o 'arrependimento' da esquerda
Henrique Monteiro
Expresso, Domingo, 15 de dezembro de 2013
A esquerda não costuma gostar de Papas. Não gosta do que é transcendente, não racional, embora adore o lado emocional das manifestações e dos discursos, e tem da Igreja sempre a ideia da Inquisição, como se a Inquisição tivesse acontecido antes de ontem e não tivesse, mesmo no séc. XVI, sido imposta pelo Estado e pelo poder político que a esquerda gosta de contrapor à Igreja.
Sendo laico, embora crente, concordo com a estrita separação de Igreja e de Estado e penso que um e outro devem viver o mais independentemente possível. Congratulo-me por perceber ser esse o pensamento do Patriarca de Lisboa e, de um modo geral, da Igreja moderna. Por isso não entendo a militância anti-religiosa que parece ser apanágio da parte mais ativa da nossa esquerda militante.
João Paulo II que disse umas verdades acerca do Leste europeu quando este era dominado pelo comunismo, foi por eles abominado. Bento XVI que disse umas verdades acerca da natureza da Teologia da Libertação, era odiado ("o pastor alemão") ainda que seja um dos grandes intelectuais europeus. Chegou Jorge Bergoglio (após a resignação de Bento XVI, num exemplo de retiro e abdicação do poder que quase nenhum político teve coragem) e, para não variar, a esquerda inventou uma cumplicidade do antigo Cardeal de Buenos Aires com a ditadura argentina.
A coisa foi desmentida e, finalmente, desmontada. O Papa revelou-se uma pessoa diferente, mais aberta, mais expansiva, mais ousada. E disse duas ou três coisas sobre o dinheiro e o capitalismo que, por acaso, os seus diversos antecessores já tinham também dito; mas parte da esquerda, que nunca olhou para a doutrina, mas apenas para o estilo, passou a endeusá-lo. Não me refiro aos católicos de esquerda, que são uma corrente respeitável da Igreja e que preferem seguramente o seu envolvimento mais próximo dos simples, mas àqueles que sendo "ateus, graças a Deus" a contra as hierarquias religiosas descobriram há um mês que a mensagem da Igreja há muito que é contra o "consumismo", a "ditadura dos mercados" e o "lucro desenfreado". Ou seja, que não foi Bergoglio a doutrinar, que o Papa apenas citou o que está nas escrituras e em encíclicas há muito escritas, desde a Rerum Novarum, de Leão XIII, escrita em 1891: "Os trabalhadores, isolados e sem defesa têm-se visto, com o decorrer do tempo, entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça de uma concorrência desenfreada. A usura voraz veio agravar ainda mais o mal. Condenada muitas vezes pelo julgamento da Igreja, não tem deixado de ser praticada sob outra forma por homens ávidos de ganância, e de insaciável ambição" - este texto tem 123 anos.
Mas há mais antigos: "Ninguém pode servir a dois senhores; ou não gostará de um deles e gostará do outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro" (Mt 6:24) - assim resumia São Mateus o pensamento de Cristo. " A raiz de todos os males é a ganância do dinheiro" (primeira carta a Timóteo, de São Paulo).
Não há dúvida que a doutrina é antiga. Pelo que o súbito amor da esquerda pelo Papa tem o sabor de uma conversão: não do Papa, como pretende a esquerda, mas da própria esquerda. E como também está escrito (São Lucas), "haverá mais alegria no céu por um pecador que se arrepende do que por 99 justos".
Haja fé!
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