O Natal português

Inês Teotónio Pereira
ionline 28 Dez 2013

"A consoada não é nada! As pessoas inventaram a consoada e já não vão à missa do galo porque têm de jantar, porque vão comer! Isto não faz sentido, é muito triste?"

No domingo passado fui a uma missa celebrada pelo mítico padre Dâmaso. Era o domingo antes do Natal e o padre holandês estava visivelmente desanimado com a época natalícia e com a forma como as suas ovelhas a viviam. E como já não tem idade, nem feitio, nem paciência para dizer as coisas que pensa com suavidade, foi, digamos, acutilante. Começou o padre Dâmaso por dizer que o Natal não é uma festa de família: "Se quiserem fazer festas de família têm o ano inteiro para as fazer, o Natal é a celebração do nascimento de Jesus. Não é uma festa de família." As famílias presentes agitaram-se. Dizia o padre Dâmaso que durante a Primeira República - marcada pelo anticlericalismo, a perseguição religiosa e o domínio da maçonaria - tudo se fez para transformar o significado do Natal esvaziando-o da sua dimensão espiritual e religiosa e substituindo-a pela celebração da família. Jesus passou então a ter um papel secundário e a família ocupou o lugar do presépio. Passaram-se décadas e a família mantém o lugar cimeiro nesta época e Jesus passou a figurante, na melhor das hipóteses.
Bastante irritado com o estado de alma dos católicos representados naquela pequena assembleia, o padre Dâmaso continuou: "E a consoada? A consoada não é nada! As pessoas inventaram a consoada, o jantar na véspera de Natal, e já não vão à missa do galo porque têm de jantar, porque vão comer! Isto não faz sentido, é muito triste...", queixava-se o sacerdote holandês. "Onde está Jesus no Natal português?"
Nem de propósito, no dia seguinte, ouvi a seguinte expressão numa televisão: "O Natal também é celebrado segundo a tradição cristã." Ou seja, para quem não sabe, os cristãos também celebram o Natal. Imaginem só que existe uma coisa chamada missa do galo e, segundo eles, Jesus nasceu no Natal. O Natal afinal não é só família, presentes, peru, bacalhau, farófias e a "Música no Coração", vejam só. Parem as rotativas: há uma dimensão religiosa da coisa! Parece que há um grupo de pessoas dentro do grupo das pessoas católicas que acham que o Natal é a data de nascimento de Jesus, que nasceu e se fez Homem para nos dar a certeza de que Deus vive no meio de nós. E essa malta, que acredita nestas coisas, até vai à missa a meio da noite. Enfim, foleirices.
Mas o Natal português é moderno, não é foleiro. O nosso Natal é bastante terreno, palpável: é o dia em que nos empanturramos de doces, recebemos presentes, estamos com a família e fazemos a digestão esparralhados num sofá a ver a "Música no Coração" pela centésima vez. Jesus não tem nada a ver com isto. Mesmo para os católicos, cada ano que passa Jesus tem menos a ver com este ritual. O Pai Natal, as crianças e os centros comerciais tomaram conta da festa. No nosso Natal a religião é uma coisa estranha.
Diz o Papa Francisco que a Igreja precisa de ser um hospital de campanha. Ou seja, que é preciso tratar das feridas urgentes, que é preciso ir ao encontro das pessoas, principalmente dos próprios católicos, e que não basta ter as portas abertas. O nosso Natal é a prova viva dessa urgência. Ou o que sobrará para a história do Natal do Padre Dâmaso será apenas o anúncio do azeite Galo.

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