As conquistas da crise

Sol | 9 de Dezembro  2013| José António Saraiva
Os portugueses gostam muito de citar uma frase de John F. Kennedy no seu discurso de posse como Presidente dos Estados Unidos: «Não perguntes o que o teu país pode fazer por ti, pergunta o que tu podes fazer pelo teu país».

Sucede que muitos dos que citam esta frase não a transpõem para Portugal.
Todos os dias vemos gente nos ecrãs da televisão e nas manifestações de rua a exigir tudo e mais alguma coisa do Estado.
É o centro de saúde que não pode fechar, as pensões de reforma que não podem ser cortadas, as transferências para a RTP que não devem ser reduzidas, os abonos de família que deveriam aumentar, as transferências para as universidades que não permitem o seu funcionamento, os cortes de salários que são ilegítimos, os subsídios ao teatro e ao cinema que será criminoso retirar, etc.
As pessoas habituaram-se a ser lamurientas, a viver à sombra do Estado e a queixarem-se do Governo por tudo e por nada.
Essa resmunguice virá do tempo de Salazar, em que o Estado era todo-poderoso e omnipresente.
Mas essa época acabou - e os novos tempos exigem do país outra resposta e impõem aos cidadãos outra atitude.
A sociedade civil tem de reagir, de mudar de hábitos; as pessoas têm de deixar de contar com o Estado e devem assumir os seus próprios destinos.
Não tenho dúvidas de que há gente a sofrer muito com a crise.
Sobretudo os desempregados, que sofrem materialmente e sofrem psicologicamente - pois é uma violência uma pessoa não poder trabalhar.
Mas a crise também tem tido as suas vantagens.
Logo à partida, verificou-se um recuo naquele que tem sido um dos nossos principais problemas: a monstruosa despesa do Estado.
De facto, a despesa pública primária (isto é, excluindo os juros da dívida) diminuiu consideravelmente em três anos (cerca de 10 mil milhões de euros): era de quase 84 mil milhões em 2010, rondará os 74 mil em 2013.
Depois, a poupança das famílias aumentou, passando de 10% do rendimento disponível em 2010 para 12% em 2013 - e isto, note-se, apesar da queda dos salários.
E este aumento da poupança traduziu-se no reforço da liquidez dos bancos.
É certo que daqui também resultou a diminuição do consumo.
Mas, atenção: o consumo tem um lado perverso pois, se por um lado anima o comércio, por outro estimula as importações, com consequências negativas na balança comercial.
Assim, no período de 2010 a 2013, em virtude da queda do consumo, as importações baixaram, passando dos 67,5 para os 64 mil milhões de euros.
E a retracção da procura interna teve outro efeito positivo: obrigou muitas empresas a voltarem-se para o exterior como meio de sobrevivência.
São inúmeros os empresários que dizem: «Para me aguentar, tive de me virar lá para fora e exportar».
Deste modo, verificou-se no mesmo período uma notável subida das exportações, de 54 mil para 67 mil milhões de euros.
Foram 13 mil milhões de crescimento, ou seja, 25% em três anos. É obra!
E o aumento das exportações, associado à redução das importações, proporcionou pela primeira vez em muitos anos um resultado positivo da balança comercial - que passou de 13,3 mil milhões de euros negativos para 3,2 mil positivos.
A crise também contribuiu fortemente para 'limpar' do mapa muitas empresas ou instituições inviáveis (como algumas fundações), que funcionavam artificialmente à custa de subsídios públicos.
O tecido empresarial está hoje mais saudável, pois as empresas que sobreviveram são as que têm mais condições para viver por si.
A nossa competitividade também aumentou em alguns sectores, e isso é determinante.
A competição faz-se hoje a nível global, os produtos são ou não são competitivos no mercado - e, se não forem, não se vendem, as fábricas que os fazem perdem clientes, e a prazo entrarão em crise e acabarão por fechar.
Esta lei é inexorável.
Podem fazer-se todas as greves do mundo - mas nenhuma empresa fugirá a esta lógica.
Outra enorme vantagem da crise foi reaproximar Portugal dos países do Hemisfério Sul que falam português, dos quais nos afastámos após o 25 de Abril.
Tendo em conta a língua comum e um certo tipo de know-how, as nossas empresas sentem-se mais confortáveis a operar em Angola, Moçambique ou Cabo Verde do que na Suíça ou na Polónia; e com parte da nossa emigração sucede o mesmo.
Por outro lado, essa reaproximação ao Sul contribuiu para diversificar os mercados de exportação e conquistar novos clientes.
E tornou de novo Portugal mais central no mundo: deixou de ser periférico na Europa para se recolocar na encruzilhada de três continentes - a Europa, a África e a América.
Diminuição da despesa pública, ideia de que o Estado não pode dar tudo aos cidadãos, fim de alguns subsídios, aumento da poupança, redução das importações, aumento das exportações, fecho de empresas inviáveis, mais competitividade, reaproximação aos países lusófonos, nova centralidade - tudo isto é bom e foi precipitado pela crise.
Se não fosse a crise, muito do que já se fez ainda estaria por fazer.
E oxalá que algumas 'conquistas da crise' não venham a andar para trás - como muitas vezes tem sucedido em Portugal com outras reformas.
jas@sol.pt

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