Bom Ano
Como escreveu Tocqueville, "aqueles que pedem à liberdade algo mais do que a própria liberdade são feitos para servir."
Com esta crónica de fim de ano, terminam as minhas Cartas de Varsóvia (mas não a minha colaboração semanal com o Público). O meu contrato de três anos no Colégio da Europa, em Varsóvia, chega agora ao fim. Por motivos vários, decidi não concorrer à renovação do contrato. Mas aprendi, nestes três anos entre Lisboa e Varsóvia, várias coisas que podem ser úteis para os votos de Bom Ano de 2014.
A primeira delas, paradoxalmente, foi o valor da aliança euro-atlântica. À primeira vista, a Polónia dificilmente poderia estar mais longe do Atlântico. Mas, dificilmente na Europa continental pode ser encontrado um povo mais amigo da América – talvez com excepção dos suíços e dos portugueses.
Por sólidas razões, os polacos olham a aliança atlântica como chave da sua independência nacional e da segurança das suas fronteiras. Woodrow Wilson pode ser um nome quase esquecido hoje entre os europeus. Mas não na Polónia, onde o Presidente democrata norte-americano é recordado como o defensor da independência polaca, reconquistada em 1918, após a I Guerra. O mesmo acontece com o Presidente republicano Ronald Reagan, o líder político ocidental que mais veementemente apoiou Lech Walesa e o Solidarnosc, na década de 1980.No próximo ano, estes temas voltarão a estar em destaque. Passarão cem anos sobre o início da I Guerra Mundial e vinte cinco sobre a queda do Muro de Berlim. Em ambos os casos, a aliança euro-americana foi crucial para a Polónia e para a Europa. Esta aliança já tinha sido decisiva para derrotar o nazismo, em 1945 – embora a martirizada Polónia tivesse de esperar até1989 para poder festejar a vitória efectiva da II Guerra Mundial. Por todos estes motivos, e mais poderiam ser citados, o meu primeiro voto para 2014 é que a aliança euro-americana não seja esquecida no ano que vem.
Outra efeméride do próximo ano serão os quarenta anos do 25 de Abril e da democracia portuguesa. Em bom rigor, serão também os quarenta anos do início da chamada Terceira Vaga de Democratização mundial – que Portugal honrosamente terá desencadeado em 1974, e cuja segunda fase, a implosão do comunismo soviético, coube à Polónia iniciar na década de 1980.
Muito haverá certamente a dizer sobre estas efemérides. Entre nós, talvez seja particularmente oportuno recordar as vantagens da democracia, de que temos usufruído nestes últimos quarenta anos. Essas vantagens serão disputadas por algumas opiniões peculiares que nos últimos tempos apregoam a alegada destruição da nossa democracia pela actual maioria parlamentar. Esses disparates devem ser firmemente refutados na praça pública – pelos defensores do 25 de Abril.
A democracia é o regime da regra, como costumava insistir Mário Soares, um dos pais fundadores da nossa democracia. Isso significa que, ao contrário do salazarismo ou do cunhalismo, a democracia não se define por um modelo final de sociedade a atingir. Define-se por um conjunto de regras que garantem a liberdade concorrencial entre propostas políticas rivais.
Essas regras têm sido escrupulosamente cumpridas entre nós – sobretudo após o 25 de Novembro de 1975 e da revisão constitucional que pôs cobro ao não eleito Conselho da Revolução. Podemos gostar mais ou menos deste Governo, bem como de outro qualquer. Mas o que não podemos é confundir a democracia com as nossas preferências políticas particulares.
Será relevante recordar isto também na União Europeia, por ocasião das próximas eleições parlamentares, em Maio de 2014. Já se ouvem por aí uns auto-nomeados guardiões do europeísmo dizendo que a União estará em risco se os partidos eurocépticos tiverem a expressiva votação que as sondagens anunciam – em França, na Holanda, no Reino Unido e por aí diante.
Não tenho qualquer simpatia por esses partidos, por alguns até forte antipatia, como o da senhora Le Pen, em França. Mas é uma ilusão autoritária identificar o projecto europeu com um propósito único particular, neste caso o da sempre crescente integração supranacional – cujos interpretes únicos teriam sido designados, mas não eleitos, vá-se lá saber por quem. Vozes favoráveis à devolução de poderes aos parlamentos nacionais devem poder exprimir livremente os anseios dos seus eleitores. E medidas nesse sentido devem ser implementadas, se for essa a vontade transitória dos eleitorados.
Que a liberdade e a democracia sejam devidamente apreciadas, e não confundidas com propósitos políticos particulares – este é o meu segundo voto para 2014. Como escreveu Tocqueville, "aqueles que pedem à liberdade algo mais do que a própria liberdade são feitos para servir. (...) Aquilo que, em todos os tempos, ancorou a liberdade no coração de alguns homens foi o seu encanto próprio, independentemente dos seus benefícios: foi o prazer de poder falar, agir, respirar sem constrangimento, sob o único governo de Deus e das leis".
Bom Ano.
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