A regra e a excepção

Público 2012-03-13  Pedro Lomba

No princípio, dizia Millôr Fernandes, não era o verbo mas a verba. Pois bem. No princípio era a TAP que, para me servir da explicação do Ministério das Finanças, está em processo de privatização e actua em concorrência, merecendo ser excluída dos cortes salariais deste ano. Mas como não é só a TAP que está a caminho de ser privatizada e como há mais empresas do Estado em regime de concorrência com os privados, eis que o Ministério de Vítor Gaspar foi obrigado a negociar uma nova excepção para a Caixa Geral de Depósitos. A coisa não fica por aqui. Entretanto, mais duas empresas, a ANA e a NAV, fizeram ver que pretendem das Finanças igual tratamento. E os trabalhadores da RTP já protestam exigindo também para eles a mesma excepção.

O regime especializou-se por tradição e conveniência política em criar excepções em catadupa, alíneas, subalíneas, regimes especiais e convencionais. Uma radiografia completa à legalidade da República mostraria a manta de retalhos, o xadrez infinito em que nos tornámos, apenas porque se entendeu que todos poderiam ter o seu feudo particular. Nos tempos gordos todos reivindicaram o direito à diferença. Agora que voltámos para trás, todos olham para o vizinho do lado em nome da igualdade. O argumento da concorrência não satisfaz ninguém.

Para apaziguar a ira que tem vindo de outras bandas e para estancar o efeito de dominó, Miguel Relvas avisou que não se trata de "excepções" mas sim de "adaptações", já que por causa da concorrência a TAP e a Caixa não representariam situações idênticas à de outras empresas públicas. Uma "adaptação" pode não ser, em Direito, o mesmo que uma "excepção"; em política, dificilmente alguém aceitará a diferença. Precisamente: haverá mesmo diferença?

A concorrência entre empresas públicas e privadas é constante e feroz e nuns casos mais constante e feroz do que noutros. No resto do Estado não só falta essa concorrência empresarial, como não existe perigo nenhum de os quadros se escapulirem para o privado. Vive-se mansamente com a garantia de um presente e futuro certos. Mas é esse argumento da concorrência que dá que pensar. Um professor do ensino secundário ou universitário não concorre também com outro professor do ensino público ou privado? Um juiz de comarca não concorre com outro juiz de comarca? E um funcionário público não concorre com outro funcionário público? Por que servirá a concorrência para uns e não para outros?

À superfície, a resposta parece evidente. Não, o professor, o juiz, o funcionário não concorrem. Não nos mesmos termos que um trabalhador da TAP ou da Caixa perante os privados. Ou concorrem tão pouco que não se pode falar em verdadeira concorrência. Não interessa que o juiz, professor ou funcionário sejam por acaso excelentes, ou que o Estado precise deles em vez de outros.

Façamos a seguinte pergunta: não deveriam todos estes trabalhadores, funcionários públicos, empregados de todas as empresas públicas poder concorrer nas mesmas condições, de maneira a serem tratados de forma diferente, dentro do referido espírito de "adaptação" a que se referiu Relvas? Não deveriam por isso ter incentivos para concorrer? Pode não ser absurdo instituir-se uma excepção para a TAP, CGD ou para outras empresas públicas em função da concorrência com os privados. Mas é certamente absurdo não existirem formas de concorrência noutras profissões do Estado que permitissem cortar o salário de alguns e não de todos. Só que em Portugal, no meio da desigualdade que toda a gente vê, inventou-se uma igualdade que ninguém questiona.

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