Os pequenos ópios do povo
Público 2012-03-06 José Vítor Malheiros
A venda de cromos é uma espécie de rifa, em que o cliente não sabe o que compraA infecção tem a originalidade de ser cara, porque os cromos vêm em envelopes que se compram segundo o método duplamente cego: quem vende não sabe o que vem lá dentro, quem compra não sabe o que compra. Como os miúdos se divertem depois a trocar os cromos repetidos, a brincadeira pode não chegar a custar tanto como a prestação da hipoteca. Cada caderneta fica mais cara do que o livro mais caro lá de casa, mas quase não se dá por isso, porque tudo acontece aos poucos e os miúdos gostam.
É uma exploração abusiva da ingenuidade e da inumeracia de muitos compradores que a caderneta não contenha claramente escarrapachado o custo mínimo do seu preenchimento. Claro que tudo depende do número de cromos repetidos que aparecem nos envelopes, mas esse é um factor que os clientes não têm nenhuma forma de controlar e que a editora (a famosa Panini, com uma facturação de centenas de milhões de euros por ano) pode manipular livremente. Mas, mesmo sem poder prever o custo exacto para cada comprador, há pelo menos um custo mínimo, que é o custo da aquisição da totalidade dos cromos se nunca aparecesse nenhum repetido - uma impossibilidade estatística. Mesmo este custo, porém, é avultadíssimo (50 euros, 80 euros), e constituiria uma surpresa para muitos compradores. A informação deveria ser de afixação obrigatória nas cadernetas e nos envelopes, para evitar a exploração dos incautos em que o negócio dos cromos se tornou.
Por outro lado, sendo a editora livre de incluir nos seus envelopes os cromos que quiser, nada a impede de adiar estrategicamente a inclusão de certos cromos, de forma a forçar a compra de envelopes para além do que seria a simples consequência da lei das probabilidades.
A venda de envelopes de cromos é, de facto, uma espécie de rifa, em que o cliente paga sem saber o que compra e recebe um produto que resulta de um sorteio. Não existe nenhuma diferença de fundo entre isto e um jogo de azar - a não ser o facto de estes serem regulados e fiscalizados e de a Panini poder agir sem quaisquer entraves.
2. Os Invizimals são uns monstros agressivos (como é que os brinquedos e os desenhos animados se tornaram quase todos monstros histéricos japoneses?) com poderes especiais "de ataque" e "de defesa" e com nomes entre o mitológico e o techno. É claro que os miúdos (sim, é uma coisa de rapazes) competem com os colegas para ver quem tem mais, quem tem quais, discutem com os amigos as qualidades de cada um, consultam os sites especializados (sim, há sites especializados) e acabam por saber tudo o que há para saber sobre a morfologia, as técnicas de combate e os costumes tribais de toda esta tropa fandanga. É aterrador que tantos milhões de crianças pelo mundo aprendam tanto sobre coisas tão absolutamente inúteis e tão cuidadosamente desligadas de qualquer tipo de realidade. Não se trata de ficção, nem de fantasia. Aqui não há história, não há narrativa, não há descrição e muito menos discurso ou reflexão. Não há sequer emoção. Não há sequer verdadeiramente personagens. Não há consciência que permita empatia. Há apenas ruído e efeitos de luz que se repetem num ciclo hipnótico. Nenhuma criatividade, apenas marketing. Confesso que coleccionei muitos cromos com gosto durante a minha infância. Não sendo apreciador de "bonecos da bola", tive cadernetas de "raças de cães" (acho que foi aí que aprendi tudo o que sei sobre o tema), sobre "povos do mundo", sobre as "maravilhas e os mistérios do mundo animal". Sei que existem no mundo real inúmeros temas fascinantes, capazes de captar a atenção e a imaginação das crianças, da vida animal às paisagens, da ciência ao espaço, das tradições às máquinas, da arte às profissões, a própria ficção, com a literatura e o cinema. E pergunto-me como é que deixámos que a alienação das crianças se transformasse numa indústria tão poderosa.
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