Sermão de Quarta-feira de Cinzas - Padre António Vieira
PADRE ANTÓNIO VIEIRA
Em Roma, na Igreja de S. António dos Portugueses, Ano de 1670.
Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris (1).
(1) Lembra-te homem, que és pó, e em pó te hás de converter.
I. O pó futuro, em que nos havemos de converter, é visível à vista, mas o pó presente, o pó que somos, como poderemos entender essa verdade? A resposta a essa dúvida será a matéria do presente discurso.
Duas coisas prega hoje a Igreja a todos os mortais, ambas grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas certas. Mas uma de tal maneira certa e evidente, que não é necessário entendimento para crer: outra de tal maneira certa e dificultosa, que nenhum entendimento basta para a alcançar.
Uma é presente, outra futura, mas a futura vêem‑na os olhos, a presente não a alcança o entendimento.
E que duas coisas enigmáticas são estas?
Pulvis es, tu in pulverem reverteris: Sois pó, e em pó vos haveis de converter.
— Sois pó, é a presente; em pó vos haveis de converter, é a futura.
O pó futuro, o pó em que nos havemos de converter, vêem‑no os olhos; o pó presente, o pó que somos, nem os olhos o vêem, nem o entendimento o alcança.
Que me diga a Igreja que hei de ser pó: In pulverem reverteris, não é necessário fé nem entendimento para o crer.
Naquelas sepulturas, ou abertas ou cerradas, o estão vendo os olhos. Que dizem aquelas letras? Que cobrem aquelas pedras? As letras dizem pó, as pedras cobrem pó, e tudo o que ali há é o nada que havemos de ser: tudo pó.
Vamos, para maior exemplo e maior horror, a esses sepulcros recentes do Vaticano. Se perguntardes de quem são pó aquelas cinzas, responder‑vos‑ão os epitáfios, que só as distinguem: Aquele pó foi Urbano, aquele pó foi Inocêncio, aquele pó foi Alexandre, e este que ainda não está de todo desfeito, foi Clemente.
De sorte que para eu crer que hei de ser pó, não é necessário fé, nem entendimento, basta a vista.
Mas que me diga e me pregue hoje a mesma Igreja, regra da fé e da verdade, que não só hei de ser pó de futuro, senão que já sou pó de presente: Pulvis es?
Como o pode alcançar o entendimento, se os olhos estão vendo o contrário?
É possível que estes olhos que vêem, estes ouvidos que ouvem, esta língua que fala, estas mãos e estes braços que se movem, estes pés que andam e pisam, tudo isto, já hoje é pó: Pulvis es?
Argumento à Igreja com a mesma Igreja: Memento homo.
A Igreja diz‑me, e supõe que sou homem: logo não sou pó.
O homem é uma substância vivente, sensitiva, racional.
O pó vive? Não.
Pois como é pó o vivente?
O pó sente? Não.
Pois como é pó o sensitivo?
O pó entende e discorre? Não.
Pois como é pó o racional?
Enfim, se me concedem que sou homem: Memento homo, como me pregam que sou pó: Quia pulvis es?
Nenhuma coisa nos podia estar melhor que não ter resposta nem solução esta dúvida. Mas a resposta e a solução dela será a matéria do nosso discurso. [ ...]
[...]
Em que cuidamos, e em que não cuidamos?
Homens mortais, homens imortais, se todos os dias podemos morrer, se cada dia nos imos chegando mais à morte, e ela a nós, não se acabe com este dia a memória da morte.
Resolução, resolução uma vez, que sem resolução nada se faz.
E para que esta resolução dure e não seja como outras, tomemos cada dia uma hora em que cuidemos bem naquela hora.
De vinte e quatro horas que tem o dia, por que se não dará uma hora à triste alma?
(23) Disse: Agora começo (Sl 76,11). Esta é a melhor devoção e mais útil penitência, e mais agradável a Deus, que podeis fazer nesta quaresma.
Tomar uma hora cada dia, em que só por só com Deus e connosco cuidemos na nossa morte e na nossa vida.
E porque espero da vossa piedade e do vosso juízo que aceitareis este bom conselho, quero acabar deixando‑vos quatro pontos de consideração para os quatro quartos desta hora.
Primeiro: quanto tenho vivido?
Segundo: como vivi?
Terceiro: quanto posso viver?
Quarto: como é bem que viva?
Torno a dizer para que vos fique na memória: Quanto tenho vivido? Como vivi? Quanto posso viver? Como é bem que viva? Memento homo!
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