Os subterraneos da democracia
Público, 08.02.2009, António Barreto Retrato da semana
A crise económica e financeira, a corrupção e a proliferação de negócios estranhos ocupam todas as atenções
Extraordinário, este ano de 2009! Um dos mais difíceis da história recente do país. Ainda por cima com eleições europeias, autárquicas e legislativas. Curiosamente, o peso das dificuldades é tal que as eleições parecem estar a anos de distância.
A crise económica e financeira, com relevo especial para o fecho de empresas, os despedimentos e o desemprego, ocupa as atenções. Estas são partilhadas com a corrupção e a proliferação de negócios estranhos, com ou sem intervenção do Governo. Antigamente, as crises criavam oportunidades e sobretudo gangsters. Hoje, os bandidos de sucesso e os golpes de génio financeiro provocam, eles, as crises. O terceiro tema que a todos prende é o da justiça. Quando há crise, negócios esquisitos e corrupção, logo a justiça é chamada a agir. Mas, em si mesma, tem sobejos motivos de apreensão: os seus desmandos, os atrasos, a vaidade judicial, as chicanas processuais e a quebra do segredo de justiça são suficientes para mobilizar as preocupações dos cidadãos. Já se percebeu que a justiça e a regulação são incapazes de resolver os problemas a tempo: são cada vez mais o lado inquietante do problema. Para muitos, desempregados ou vítimas, o desespero começa a ser uma realidade.
Agravidade do que precede é tal que nem recordamos o facto essencial do ano: as eleições. Teoricamente, estas poderiam ser um instrumento de resolução. Debates sérios e veredicto popular poderiam seleccionar e ungir quem tem mais capacidades para deitar mãos à obra. Mas, com realismo, receia-se o pior: é bem possível que das eleições resulte um poder minoritário, partidos fragmentados e uma autoridade dispersa.
As eleições europeias não interessam a ninguém. Não têm qualquer espécie de significado. Ou antes, têm-no cada vez menos, se tal é possível. Em tempos de ressurreição do proteccionismo, são um modelo de inutilidade. Já as outras, autárquicas e legislativas, são de real importância. Espera-se que sejam úteis. Com os ecrãs de nevoeiro criados pelas dificuldades presentes, poucos são os que pensam que as eleições poderiam ajudar. E delas não se ocupam. Mas há quem não pense noutra coisa. Os socialistas que querem castigar Sócrates e os sociais-democratas que se querem ver livres de Ferreira Leite estão activos e agitados. Não querem ganhar eleições, querem que os seus adversários internos as percam. Nos municípios, depois dos precedentes de há poucos anos, a tentação independente é fortíssima e alguns partidos vão conhecer problemas de monta. A situação social e os conflitos profissionais recentes vão levar muitos eleitores a comportamentos improváveis. Mais do que muitas outras, estas eleições são razoavelmente imprevisíveis. Parece tão difícil retirar o primeiro lugar aos socialistas como voltar a dar-lhes a maioria absoluta. Além disso, pouco se pode prever, muito ou tudo pode acontecer. Ora, as eleições servem para definir uma indispensável maioria de governo e seleccionar melhor pessoal político do que aquele que temos à disposição. Por isso, seria interessante que as atenções dos eleitores começassem a concentrar-se nos próximos sufrágios. Mas tal é difícil acontecer, já se viu porquê.
Não se pense, todavia, que nada está em preparação. Pelo contrário. Nos subterrâneos da democracia já se trabalha. Decisões estão a ser preparadas. Escolhas estão a ser feitas. Não há congresso, convenção, seminário ou inauguração que não tenha isso em mente, mesmo se não explícito. As desculpas da crise e da corrupção servem para esconder a campanha em curso, pois ficaria mal, quando as populações sofrem, pensar em eleições. Mas esse tão especial momento, o da confecção das listas, já chegou. Os ajustes de contas adiados, no PS, no PSD e no CDS, começam por aí. Os chefes partidários que receiam perder querem deixar em legado, aos seus sucessores, grupos parlamentares fiéis e complicados. A simultaneidade das duas eleições permite combinar escolhas entre Parlamento e câmaras. Figuras de enfeite estão a ser convidadas. Lá teremos, como sempre, candidatos que, se não forem ministros, fazem-se substituir e vão à sua vida.
Há cada vez menos pessoas a votar pela camisola ou por mera credulidade. Há cada vez mais quem faça contas à vida e decida livremente votar. Há quem não vote enquanto o sistema eleitoral for o que é: proporcional por lista, com grandes círculos anónimos e colectivos e sem compromisso pessoal. Outros, mesmo críticos do sistema, procuram sinais que os ajudem a decidir. Por exemplo, um bom critério é o de exigir que o candidato vencedor fará tudo o que for necessário para fazer ou compor um governo de maioria parlamentar. Quem tal não fizer e se esconda atrás das eternas declarações marialvas e covardes, deverá ser punido. Mas há outras exigências que se podem fazer aos candidatos, na falta de hábitos legais ou de comportamentos de honra. Nenhum candidato deveria ser admitido sem um compromisso público relativamente à seriedade do seu gesto, isto é, uma promessa irrefutável de que, depois de eleito, cumpre o seu mandato e não se retira para a sua vidinha. Os barões que concorrem para o currículo, ou na exclusiva esperança de virem a ser ministros, seriam assim afastados. De igual modo, a certeza de que um candidato, depois de eleito, nunca se deixará substituir, aumentaria a confiança que ainda se pode depositar numa eleição. Finalmente, a honestidade e a moralidade da nossa democracia poderia ser melhorada se um candidato prestasse juramento solene ou simplesmente prometesse: se for eleito, comportar-se-á sempre com independência pessoal, votará de acordo com a sua consciência e os seus compromissos pessoais e não prestará vassalagem à disciplina de partido, o mais infame costume do nosso Parlamento. Tudo isto parece irrealista, mas é mais possível do que se julga. Por vezes, a honra substitui as más leis. Com vantagem.
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