O país do faz de conta


pÚBLICO, 26.02.2009, Helena Matos

A transparência agrada pouco. É mais tranquilo fazermos todos de conta que os duendes nos pagam o SNS


Pão com Ómega-3.
Infelizmente já não posso garantir que o Pão São de Cereais com Ómega-3 faz bem ao coração e o outro que tinha já não sei se Alfa ou Beta faz bem às pernas. O que sei é que o acto de comprar pão se tornou numa espécie de ida à farmácia. Adeus pães saloios, mafras e alentejanos. Agora temos o Ómega-3, mais o Prokorn, o pão são e um pão qualquer que leva Alfa Amilase. Esta evolução do alimento para o alimento-medicamento estava mais ou menos anunciada e digamos que se enquadra numa tendência global para vivermos de esguelha. Ou seja, ninguém faz aquilo que é expectável que faça porque entende que deve fazer uma outra coisa qualquer. Logo os padeiros falam como os farmacêuticos, os pais fazem de conta que são os melhores amigos dos filhos, as escolas empenham-se em educar sexualmente as mesmas crianças às quais desistiram de ensinar a tabuada, as autarquias descobrem em si uma vocação de organização de eventos... e tudo isto traz meio país a fazer de conta que é outra coisa qualquer menos aquilo que é suposto ser. O resultado seria apenas anedótico caso não nos infernizasse a existência, como o provam os casos seguintes.

O director que é director mas faz de conta que não é director.
Pode parecer complicado mas tal pessoa não só existe como esta contradição insanável entre os termos foi apresentada no PÚBLICO como uma revolução na educação. Por outras e mais directas palavras: as escolas públicas vão voltar a ter directores. Para mostrar os "riscos e as vantagens" desta mudança, o jornal entrevistou o director da Escola Secundária de Paredes. Este encontra-se em exercício há um mês mas a placa na porta do seu gabinete indica Conselho Executivo e não Director. E segundo o director tal não acontece por acaso: "A palavra 'director' tem um peso histórico que perturba as pessoas". As mudanças que estão a ser efectuadas na gestão das escolas são demasiado importantes para que se faça de conta que não estão a acontecer. Há quem se oponha a estas mudanças. Há quem as defenda. O que não há é o direito de fazer de conta que essas mudanças não estão a acontecer.
Muito menos se entende como é que alguém se candidata a um cargo que depois receia ou tem vergonha de assumir, tanto mais que essa ambivalência é meio caminho andado para o desastre. Parafraseando Ferreira Fernandes, que ao assunto dedicou uma crónica no Diário de Notícias, este director quer mandar mas não quer que digam que ele manda. Ou talvez queira fazer de conta que manda mas na realidade não manda. Enfim pode brincar aos directores que fazem de conta que são conselhos executivos ou vice-versa. Escusava era de fazer disso uma actividade profissional.

As taxas que não são moderadoras mas que se têm de chamar assim.
12,43 euros foi quanto pagámos no meu agregado familiar por uma operação de urgência, em Santa Maria, a uma apendicite. Além da operação propriamente dita, foram ainda dois dias de internamento com tudo o que tal implica de alimentação e cuidados de saúde. Os 12,43 euros também pagaram as consultas de pós-operatório. 12,43 euros é menos do que um carregamento de telemóvel. E claro que há uma lista imensa de pessoas que nem os 12,43 euros pagam por estarem isentas.
Dirão o PSD, o CDS e alguns deputados do PS que ninguém modera o acesso a uma cirurgia de urgência como era o caso desta. Pois não, mas isso não quer dizer que não se deva pagar nada. Faria aliás muito mais sentido que o CDS e o PSD, em vez de proporem a extinção das taxas moderadoras para as cirurgias e de embarcarem na cantilena do totalmente gratuito com o PCP e o BE, apresentassem propostas mais realistas e ousassem dizer que temos de nos deixar dos artifícios de linguagem que têm mantido intocável uma das mais profundas crenças do nosso legislador: a do gratuito.
Para o legislador português, algures do outro lado do mundo ou quiçá numa extremidade do arco-íris, existe uma fábrica de dinheiro que envia o dito sob a forma de moedas de ouro para Portugal. Uma vez aqui chegadas, as bolsinhas das moedas são depositadas ao cuidado do legislador, que, assim provido de tais fundos, legisla sempre garantindo o gratuito. De cada vez que promete algo gratuito, o legislador olha-se ao espelho e sente-se uma boa pessoa. Assim temos o ensino gratuito, em que, por sinal, cada aluno custa em média 5 mil euros por ano, e assistimos presentemente a uma discussão bizantina sobre as taxas moderadoras na saúde.
Nesta matéria, o legislador brincou aos aprendizes de feiticeiro e se hoje já quase ninguém recorda que há pouco mais de trinta anos em Portugal se defendia o fim da medicina privada sobra-nos ainda o dogma do serviço nacional de saúde gratuito inscrito na Constituição. Como até agora os contribuintes foram as únicas almas que se apresentaram para pagar tudo o que o legislador diz ser gratuito conviria um bocadinho menos de demagogia. De caminho seria também muito útil que os diversos serviços públicos que, como as escolas e os hospitais, prestam serviços oficialmente gratuitos informassem os utilizadores do seu custo real. Por exemplo quanto custou realmente aquela operação ao apêndice em Santa Maria?
É claro que tanta transparência agrada pouco. É mais tranquilo fazermos todos de conta que os duendes nos pagam o SNS e que, como somos um povo tolinho, tipo criancinhas que não param de comer gomas, quem nos governa tem de criar umas taxas pedagógicas para nos moderar nas idas aos hospitais.

Os autarcas que nacionalizaram o Carnaval.
Um dos momentos mais sérios e representativos da esquizofrenia em que caímos aconteceu no recente Carnaval: um autarca devidamente ladeado por um homem seriíssimo mascarado de mulher, denunciava um acto de censura no corso carnavalesco da sua cidade. Todo o país falou do dislate do Ministério Público, que, na verdade, temos grande dificuldade em perceber o que investiga e como investiga, seja nos casos de corrupção seja nos adereços dos carros alegóricos.
Mas para lá desse óbvio ululante sobre o Ministério Público, cabe perguntar o que fazia ali o autarca? É o presidente da câmara o responsável pelo cortejo? Não é o Carnaval uma festa popular? O Carnaval foi sem dúvida uma festa popular e talvez ainda o seja em alguns locais. Mas uma breve consulta ao portal que disponibiliza informação sobre os ajustes directos estatais permite concluir que de festa popular o Carnaval passou a evento pago pelos contribuintes. Esta estatização do Carnaval agigantou os orçamentos destes festejos, trouxe do Brasil escolas de samba com bailarinas que tiritam de frio e, paradoxo dos paradoxos, pôs as autarquias a dirigir uma festa que entre outras coisas funcionava como um momento de transgressão e sátira ao poder.
Mas enfim alinhemos meia dúzia de argumentos, do género investimento para atrair turistas, para justificar que um munícipio invista 218 mil euros em carros alegóricos como aconteceu este ano em Torres ou 79 mil euros em "Desfile de Pais Natal 2008" como fez a autarquia de Albufeira no último Natal. Tudo isto se sofreria com mais alegria caso os autarcas não demonstrassem um profundo e insuperável fastio pelas tarefas para as quais são eleitos. O estado do piso, as sarjetas partidas, os prédios - tantas vezes municipais! - entaipados, a legislação sobre as rendas... nada disso suscitou até hoje uma intervenção tão séria a um autarca quanto a denúncia de uma tentativa de censura no corso carnavalesco. E sobretudo, aquela marafona, ao lado do senhor presidente, tão séria no desconchavo da situação é o melhor retrato de Portugal 2009.

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