Lista de assuntos a discutir com paixão

Público, 19.02.2009, Helena Matos

Quem questionar a oportunidade ou utilidade destas discussões pode ser apresentado como exemplo do obscurantista

Tendo em conta que Fevereiro já vai a meio, creio que ao nosso primeiro-ministro bastarão três ou quatro assuntos para trazer a pátria num desassossego, verdadeiramente dividida entre progressistas e reaccionários, com ele mesmo a fazer a figura de cavaleiro branco que chefia as legiões do progressismo e nos leva para o futuro, ou seja, para uma vitória retumbante nas próximas legislativas.
Esta Lista de assuntos a discutir com paixão para não sairmos do estado a que chegámos - que creio agradará ao primeiro-ministro - tem duas vantagens. Em primeiro lugar, se alguém questionar a oportunidade ou utilidade da discussão destas matérias, imediatamente se pode transformar essa pessoa no estereótipo do obscurantista, pois só alguém muito obscurantista não percebe que este é o momento para discutir isto. Em segundo lugar, porque estes assuntos não são bem assuntos, mas sim umas lebres que se soltam para que o primeiro-ministro possa fazer de progressista e a oposição, à excepção do BE, de reaccionária.

O casamento entre pessoas do mesmo sexo. Valham-nos os homossexuais ou aqueles que dizem que os representam para que o casamento civil a que se seguirá a luta pelo religioso readquira importância. O casamento entre duas pessoas do mesmo sexo funciona hoje como a questão Calmon no início do século XX. São polémicas que só existem porque servem exemplarmente ao papel de foguetes: fazem muito alarido e encobrem a ausência de programas políticos. Em 2009 mandam-se os apoiantes ao cinema ver o filme sobre a vida do gay discriminado e liberto, no tempo da questão Calmon distribuíam-se panfletos sobre os crimes dos jesuítas. Quando chega a hora de governar o vazio é o mesmo, mas o poder, esse, entretanto está ganho. Aliás, se quiséssemos discutir a sério o casamento, ou seja, as uniões às quais o Estado dá o estatuto de matrimónio, teríamos muito mais para discutir. Por que razão não discutimos a legalização da poligamia? Quantos polígamos existem na Europa? Estamos perante famílias estáveis, que tal como as monogâmicas constituem células que transmitem a propriedade e cuidam dos seus. Contudo vamos entregar-lhes crianças para adopção? Muitos dos imigrantes na Europa vêm de países onde a poligamia é tão normal quanto entre nós a monogamia. Claro que uma discussão destas é terreno armadilhado, mas não creio que os polígamos, heterossexuais ou homossexuais mereçam menos atenção por parte de quem acha que é crucial para o país discutir o casamento monogâmico entre homossexuais.

Os direitos dos animais. Já nem falo dos gatos e dos cães, embora exista sempre a possibilidade de voltar a pedir a uma associação qualquer que diga que Paulo Rangel sofre dum "assustador trogloditismo pré-científico, racionalmente oco, socialmente atávico e politicamente irresponsável" por ter declarado que "Trocaria a vida do meu cão pela vida de qualquer pessoa em qualquer lado do mundo, mesmo não a conhecendo. Uma pessoa vale sempre mais do que um animal". Sem desprimor para os intervenientes desta questão, digamos que já estamos noutro patamar desta luta por novos direitos. Para tal não tem o primeiro-ministro de procurar muito, basta-lhe fazer outro daqueles telegénicos telefonemas para Zapatero e pedir-lhe o texto do projecto "Gran Simio" que já chegou à Comissão de Meio Ambiente do parlamento espanhol e também do parlamento balear e que entre outras coisas pretende "derrubar a barreira da espécie", implementar "a igualdade para lá da humanidade" e incluir pelo menos e para já os chimpanzés na nossa espécie, ou seja, passá-los a homo por enquanto não sapiens mas sim a troglodytes.
Tudo isto pode fazer rir quem está de fora, mas, a avaliar pelo caso espanhol, é uma questão verdadeiramente fracturante, que por sua vez alimenta outras polémicas - por que ficam os orangotangos de fora da integração nos homo? Por uns escassos três por cento de diferença nos genes? - e não duvido de que mais campanha menos campanha em ritmo de fuga da realidade também acabaremos a discutir a igualdade entre humanos e chimpanzés. E já agora com a cabra-do-Gerês, que sempre era um endemismo.

A educação sexual nas escolas. Os professores efectivos reformam-se em catadupa; começam-se reformas curriculares como a da Língua Portuguesa que ninguém sabe em quê e onde pára; a violência banalizou-se e chama-se agora a polícia para impor a crianças aquele mínimo de ordem que os professores e funcionários já não conseguem, não podem e também desistiram de tentar que exista nos estabelecimentos escolares; as alterações ao estatuto dos professores levaram a uma situação de bloqueio... mas nós, portugueses, se esta lista-propaganda funcionar, vamos discutir nos próximos meses, graças aos bons ofícios da JS, algo de tão importante e crucial quanto a educação sexual nas escolas. E como o que tem de ser tem muita força e a propaganda ainda mais força tem, será importante começarmos por perceber o que se entende por educação sexual nas escolas. Até agora tem vigorado nesta área uma perspectiva muito "Ciências da Natureza/funcionamento do corpo humano" que não satisfaz a JS e sobretudo aqueles que, através desta temática, pretendem fazer proselitismo ideológico nas escolas, tanto mais que se prevê que estes conteúdos passem a ser ministrados por membros de organizações não-governamentais que certamente da Opus Dei à Maçonaria se farão representar. Como é óbvio, não cabe no espírito libertador da JS que os cidadãos tenham outras opiniões sobre aquilo que realmente precisam na escola. Por exemplo, que achem que a Educação Sexual é um dos vários assuntos que os alunos poderiam ver abordados de forma muito mais eficaz por técnicos nos infelizmente desactivados gabinetes médicos das escolas. A população adolescente, que já não vai ao pediatra e ainda não vai ao médico de família, acaba por ter pouco acompanhamento clínico. Seria excelente integrar na rotina das escolas gabinetes com técnicos de saúde - e não activistas de ONG regra geral tão activos quanto incultos - onde os alunos, além de informações sobre planeamento familiar, doenças sexualmente transmissíveis e outras questões da sexualidade, pudessem também ser acompanhados de modo a detectarem-se distúrbios alimentares, problemas de crescimento, má audição ou os casos de abusos e maus tratos.
Claro que nada disto em termos de propaganda rende o material telegénico de um Dia da Educação Sexual por período, como propõe a JS, mas como são os contribuintes que vão pagar tanto activismo, terá a JS de aceitar que alguns de nós tenhamos dificuldades em passar cheques em branco.

A eutanásia. Nos dias comuns o Governo salva-nos de catástrofes e de crises. Digamos que já nem sabemos o que é viver sem o Governo estar sempre a salvar-nos duma crise, seja ela económica, o aquecimento global, o preço do petróleo, a falta de alimentos e a gripe das aves. Em cada um destes ambientes apocalípticos o Governo reforça-se no seu papel de grande distribuidor de dádivas, sejam essas dádivas contratos e regimes de excepção para empresários, subsídios para os carenciados, isenções, apoios... e, claro, prepara-se para o próximo salvamento. Em tempo de pré-campanha eleitoral, o Governo continua a salvar-nos, mas pretende que falemos da agonia e da morte. Não propriamente da agonia em que se transformará a vida das gerações que nos vão suceder e que mais cedo ou mais tarde receberão a factura do nosso endividamento, mas sim da nossa própria morte. O facto de vivermos cada vez mais, os avanços da medicina e a hospitalização da morte levam a que cada um de nós se confronte com o temor de ficar a vegetar. Mas se há matéria para tratar fora dum ambiente de campanha esta é uma delas, tanto mais que o poder do Estado e dos médicos pode não só determinar a nossa vida e a nossa morte como também o acesso a determinados tratamentos. Pode ser que um assessor mais diligente explique a quem de direito que é difícil fechar apoteoticamente um comício após ter teorizado sobre tal assunto, mas, mesmo assim, nunca fiando.
Jornalista

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