O terrível erro estratégico

Diário de Notícias
João César das Neves
Professor universitário

naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt

O sr. primeiro-ministro tem uma qualidade que até os adversários lhe reconhecem: sabe de política. Por isso é tão triste vê-lo cometer um erro grave que nos custará muito caro: a aposta nas obras públicas para enfrentar a crise.

O Governo dirá com razão que essa não é a prioridade, pois nem vem mencionada na Iniciativa para o Investimento e o Emprego. Mas, como sabe bem, a questão é política, não técnica. O Executivo permitiu a colagem desses grandes projectos à sua imagem. Aliás o primeiro-ministro não se cansa de repetir que "o Estado está a reforçar o investimento público, porque sabe que o combate à crise passa por aqui, que há muitas pessoas e empresas cuja actividade depende deste investimento" (Lusa, 31 de Janeiro).

Mas não será uma boa ideia? Afinal, em plena derrocada financeira, os governos de múltiplos países enveredam por essa via. Qual é o mal de avançar com o TGV, aeroporto de Lisboa, auto-estradas, barragens, etc.?

O erro é muito grave por três razões diferentes. A primeira é política: transforma Sócrates num anti-Guterres. O Governo do PS dos anos 90 apresentou-se ao eleitorado com uma crítica aberta ao "betão" do período cavaquista. A alegada obsessão do PSD com as estradas e infra-estruturas era uma tolice que não servia as pessoas; os socialistas governariam com objectivos mais humanos. Hoje vive-se a inversão de papéis e retóricas, com PS e PSD a atacar o que então defendiam. Esta situação afecta muito mais o Governo que a oposição, com Sócrates a sofrer as críticas que ele e os correligionários usaram há 15 anos.

A segunda razão é económica, transformando Sócrates num anti-Cavaco. Existe uma diferença fundamental entre o betão cavaquista e o socrático: a lógica económica. Nos anos 80, o País estava atrasado e carente de infra- -estruturas. Hoje, após 20 anos de investimentos públicos, restam poucas obras com real justificação. Os projectos de que se fala implicam auto-estradas vazias, comboios às moscas, um excelente aeroporto deitado fora.

O erro económico de José Sócrates está em acreditar que o investimento público é bom em si mesmo. O primeiro-ministro demonstra uma fé cega na virtualidade imperativa dos projectos: basta anunciá-los e gastar dinheiro para a economia arrancar. Esquece que todo o dinheiro que gasta vai tirá-lo ao bolso dos contribuintes. Tal como o investimento privado, os projectos do Estado têm de ter utilidade e justificação. Aliás até têm de ter mais, pois usam o dinheiro dos pobres. Apostar milhões em obras faraónicas nunca resolveu nenhuma crise.

Pior ainda, na ânsia de realização, esquecem-se os custos lançados sobre as próximas gerações. Além das enormes despesas de manutenção, ao garantir aos concessionários das futuras auto-estradas mínimos de tráfego que nunca vão ser cumpridos, o actual Governo hipoteca os orçamentos nacionais no horizonte previsível. Tal política raia os limites da infâmia.

Este elemento liga-se ao terceiro aspecto do erro governamental, que é financeiro. Com esta estratégia, Sócrates arrisca-se a aparecer como... anti-Sócrates! Se Guterres era o campeão contra o betão, o actual primeiro-ministro apresentou-se como o defensor do rigor orçamental. O grande feito da legislatura foi a redução do défice público de mais de 6% para menos de 2,5% do PIB. Agora, no último ano, pode regressar a níveis próximos dos que encontrou.

Em momento de crise financeira seria tolice preocupar-se com o equilíbrio das contas. Esta é a altura de o Estado se endividar, como todos os parceiros fazem e o permite o Pacto de Estabilidade. Mas com a sua abordagem o Governo não cria apenas um défice conjuntural. Ao privilegiar as obras de longo prazo, em vez de descer impostos ou dar subsídios, Sócrates compromete a solidez estrutural das contas públicas. Após a crise, o próximo primeiro-ministro, quem quer que seja, repetirá o que o actual Governo teve de dizer em 2005 sobre austeridade. O erro de Sócrates é o mesmo de Guterres: bloquear com dívidas o próximo surto de crescimento económico.

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