Tolerância com a maldade
Inês Teotónio Pereira
ionline 2015.01.17
Portugal é um oásis e é fácil ser Charlie e não ser. No dia seguinte a única coisa que muda é o nosso estado no Facebook
Esta semana descobrimos uma série de coisas: descobrimos que existia um jornal satírico chamado "Charlie Hebdo", descobrimos que Ana Gomes é eurodeputada e tem conta do Twitter, descobrimos que existe um grupo terrorista muçulmano chamado Boko Haram na Nigéria que usa meninas de dez anos como bombistas suicidas e que matou dezenas de pessoas num mercado, descobrimos que existem líderes muçulmanos que consideram blasfémia fazer bonecos de neve e outros (ou os mesmos, já não sei) que acusam as mulheres que usam perfume de prostitutas e, por fim, descobrimos que existe uma editora inglesa que pediu aos seus autores que se moderem na utilização da palavra "porco" e derivados nos seus livros infantis para não susceptibilizar ou ofender muçulmanos e judeus. Também esta semana fomos Charlie, depois fomos Charlie, mas..., avançamos para um estádio em que os Charlie afinal são os outros e acabámos com a suspeita de que os Charlie não são flor que se cheire e que o melhor (e mais simples) é ser Tanaka, Ronaldo, coleccionador de borboletas ou defensor do lince da Malcata. Foi portanto uma semana carregada de emoção, informação e algum sobressalto. Não estamos habituados a isto.
No final percebemos que o mundo não mudou, que os terroristas continuam terroristas, que o "Charlie Hebdo" continua a pôr Maomé na capa e que Ana Gomes ainda tem seguidores no Twitter. Afinal não vale a pena tanta emoção. Se sexta-feira passada o mundo era Charlie, esta sexta já é novamente cínico. Se na semana passada Hollande podia declarar guerra ao Iémen que toda agente aplaudia, esta semana já se critica o "Charlie Hebdo" por ter voltado a provocar os radicais jihadistas.
Nada de novo: o tempo move montanhas e resfria as emoções. Também no dia 12 de Setembro de 2001 não havia alma ocidental que não quisesse a "guerra contra o terror", no 12 de Março de 2004 não nos passava pela cabeça que 11 anos depois tivéssemos dificuldade em lembrar o nome da estação madrilena onde morreram barbaramente quase 200 pessoas e mais de 1700 ficaram feridas e, quanto aos atentados de Londres, a memória levou-os. A história repetiu-se com os assassinatos no "Charlie Hebdo": há uma semana tudo parecia muito pior do que hoje e daqui a meia dúzia de anos nem vai parecer assim tão mau.
É verdade que Portugal é um oásis na Europa e que neste cantinho é fácil ser Charlie e não ser porque no dia seguinte a única coisa que muda é o nosso estado no Facebook. Não temos escolas judaicas, não temos bairros do tamanho de cidades onde vivem apenas muçulmanos e onde a polícia ou os assistentes sociais têm medo de entrar e o nosso xeque David Munir é mais sensato e sereno que muitos líderes cristãos. Por isso em Portugal é fácil não ter convicções. Aliás, é muito mais fácil do que tê-las.
Nós estamos habituados a ver estes acontecimentos macabros sentados no balcão e por isso somos peritos em "mandar bocas", como os velhos dos Marretas e com a mesma emoção com que assistimos a filmes de acção. Somos peritos em análises ocas e emocionais. Apenas ocas e emocionais. Mas o que esta semana demonstrou, assim como todas as outras tragédias desde o 11 de Setembro demonstraram, é que a emoção sem convicções não tem qualquer sentido; é como o fumo sem fogo e as emoções, tal como o fumo, desvanecem- -se num abrir e fechar de olhos.
Não é fácil ser contra o terrorismo sem cedências. É mais fácil achar que todos os actos macabros têm uma justificação e que o problema principal está nas motivações: desemprego, estado social, políticas de imigração, pobreza, cultura, blasfémia, etc. Assim, com este raciocínio cómodo, rapidamente chegamos à conclusão de que só mudando o mundo o conseguimos melhorar e, de caminho, erradicar o terrorismo. Mas não, a maldade não pode em caso algum ser relativizada e o mundo, apesar de tudo, está bem melhor do que estava há 40 ou 50 anos. A única coisa que tem piorado é que somos cada vez mais tolerantes com aquilo que não devíamos ser, ou seja, com a maldade. Basta ler os jornais dos últimos sete dias para se perceber isso.
Mudar o mundo começa por ensinar aos nossos filhos que a maldade não precisa de racionalidade para se expandir, apenas precisa de fragilidade e de ausência de resistência. "Porque é que estes terroristas fizeram isto?", perguntou-me um dos meus filhos. "Porque são assassinos", expliquei, "e os assassinos não precisam de uma razão para matar, apenas de uma desculpa." Isto foi sexta-feira passada e até hoje não registei mais perguntas.
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