MÃE
António Lobo Antunes, Crónica publicada na VISÃO 1140, de 8 de janeiro
15:38 Quinta feira, 15 de Janeiro de 2015 |
15:38 Quinta feira, 15 de Janeiro de 2015 |
Era muito bonita, a mãe. Ensinou-nos a ler e ensinou-nos a dançar, talvez as duas coisas mais importantes do mundo. E lembro-me de a ver andar de bicicleta na Praia das Maçãs, um pouco indignado porque andar de bicicleta era uma coisa para nós, não era uma coisa para ela
Quando eu era pequeno, à noite, e já estava sentado na cama, a mãe dizia
com Deus me deito
com Deus me acho
aqui vai o Tóino
pela cama abaixo
eu ia, ela apagava a luz, e logo a seguir manhã. Hoje sonhei que estava sentado no parapeito do Viaduto Duarte Pacheco, a minha mãe chegava, dizia
com Deus me deito
com Deus me acho
aqui vai o Tóino
pela cama abaixo
eu ia e logo a seguir nada. Um dia destes vai ser assim, desejo que um dia destes seja assim.
O meu irmão Pedro morreu muito depressa no dia 21 de Dezembro, como era costume nele sem prevenir ninguém, mas tenho a certeza que, em qualquer ponto seu
com Deus me deito
com Deus me acho
aqui vai o Pedro
pela cama abaixo
só que, se calhar, ninguém tomou atenção a estas palavras. No dia seguinte fomos, os irmãos, dizer à mãe. Estava sentada na cadeira do costume e portou--se com a imensa dignidade com que sempre viveu. As suas palavras foram
- Tenham misericórdia de mim.
Era muito bonita, a mãe. Ensinou-nos a ler e ensinou-nos a dançar, talvez as duas coisas mais importantes do mundo. E lembro-me de a ver andar de bicicleta na Praia das Maçãs, um pouco indignado porque andar de bicicleta era uma coisa para nós, não era uma coisa para ela.
Depois de
- Tenham misericórdia de mim
que foi a única vez que a vi usar essa palavra, passado um bocado acrescentou
- Uma mãe não tem o direito de estar viva quando um filho morreu
e morreu de lhe ter morrido o filho, com uma discrição e uma elegância exemplares. Não tinha nenhuma doença especial: apenas a obrigação de cumprir um dever e foi juntar-se ao Pedro. Não comia quase, sentada na cadeira em que recebeu a notícia. Às vezes dizia-lhe versos porque ela gostava muito de poesia. Na igreja disse-lhe um dos seus sonetos preferidos, de António Sardinha, que aprendi com o pai. Costumava contar que o pai, enquanto se arranjava de manhã, na casa de banho, recitava poemas e ela ficava a um canto, a ouvi-lo.
- O que é que a seduziu no pai, mãe?
- A inteligência
ela que começou a namorá-lo aos catorze anos. Isso e a voz do pai, tão sensual:
- Nenhum dos filhos herdou a voz do pai. Talvez o António, um bocadinho.
A sensualidade e a inteligência, ela que era uma mulher muito inteligente. Falava, por exemplo, de Bento de Jesus Caraça que tinha conhecido menina, lá na Beira Alta, com o entusiasmo com que uma adolescente fala de um actor de cinema. Durante os meses ?em que esteve a preparar-se para se reunir ao filho às vezes pegava--lhe na mão e os dedos tão suaves e doces. Não éramos ricos, teve muitos filhos, tinha de tomar conta daquilo tudo, costurava, trabalha bastante em casa e quando se arranjava, assim para jantares mais de cerimónia, ficava uma brasa e pêras. Também não era especialmente terna mas contava-me, por exemplo, que, era eu bebé, lhe doía a boca de me dar beijos. Entre tantas mulheres apenas ela me declarou isso. Deve ser tão bom doer a boca de beijar. Há alturas em que me sinto culpado pelos problemas que lhe atirei para cima: doenças (uma meningite aos oito meses durante a qual estive em coma, tuberculose aos três anos), o meu mau feitio
(- Assim tão mau, mãe?)
o meu completo desinteresse pelos estudos
(Só se preocupa em escrever e ler)
o seu receio de me ver acabar a vender pensos rápidos e Bordas d'Água nas esplanadas porque a literatura não dá de comer a ninguém, esquecida que a culpa era dela dado que nos ensinou a ler antes de entrarmos para a escola e, em mim, a doença pegou:
- Só liga a livros e a raparigas.
Eu perguntava-lhe
- Existe alguma coisa para além disso, mãe?
e o facto de não responder significava, talvez, que até certo ponto estava de acordo.
Às vezes, ao zangar-se
- Não sorrias porque estou a ralhar-te
e, quando eu sorria, era-lhe difícil ralhar-me
- Sobretudo não faças essa carinha
e eu lá mudava a carinha para o resto da descompostura. Julgo que só compreendi bem o que sentia por mim quando estava com o cancro e ela veio visitar-me. Não era mulher de lágrimas mas a cara encontrava-se cheia delas, escondidas. Agora tenho o seu retrato ali e sou eu que as escondo. Pior do que você, mãe, visto que sou mais chorão. A Zézinha nasceu quando eu na guerra e escreveu-me a contar: "não sei se estás vivo ou morto porque há um mês e meio que não sei nada de ti". Estava vivo. Não assim muito vivo, mas vivo, ao passo que quanto a si, mãe, nunca esteve tão viva como agora.
Com Deus me deito
com Deus me acho
aqui vai o Tóino
pela cama abaixo.
Tanta coisa que eu podia contar a seu respeito, e não conto, e jamais contei. Não sou capaz, tenho pudor. Enquanto a metiam debaixo da terra e não aguentei, fui-me embora. Fazia um dia de sol muito bonito. E tive a certeza de ver o Pedro ao longe. Não precisámos de falar. Quase nunca precisávamos de falar para nos entendermos. Mas a palavra mãe ia de um para o outro. E somos nós que vamos pela cama abaixo. A mãe será a última pessoa a ficar, olhando para a gente. Nascemos de si, não tem o direito de se ir embora. Não concorda? Olhe que eu ponho-me a sorrir aquele sorrisinho parvo até escutar que sim.
Quando eu era pequeno, à noite, e já estava sentado na cama, a mãe dizia
com Deus me deito
com Deus me acho
aqui vai o Tóino
pela cama abaixo
eu ia, ela apagava a luz, e logo a seguir manhã. Hoje sonhei que estava sentado no parapeito do Viaduto Duarte Pacheco, a minha mãe chegava, dizia
com Deus me deito
com Deus me acho
aqui vai o Tóino
pela cama abaixo
eu ia e logo a seguir nada. Um dia destes vai ser assim, desejo que um dia destes seja assim.
O meu irmão Pedro morreu muito depressa no dia 21 de Dezembro, como era costume nele sem prevenir ninguém, mas tenho a certeza que, em qualquer ponto seu
com Deus me deito
com Deus me acho
aqui vai o Pedro
pela cama abaixo
só que, se calhar, ninguém tomou atenção a estas palavras. No dia seguinte fomos, os irmãos, dizer à mãe. Estava sentada na cadeira do costume e portou--se com a imensa dignidade com que sempre viveu. As suas palavras foram
- Tenham misericórdia de mim.
Era muito bonita, a mãe. Ensinou-nos a ler e ensinou-nos a dançar, talvez as duas coisas mais importantes do mundo. E lembro-me de a ver andar de bicicleta na Praia das Maçãs, um pouco indignado porque andar de bicicleta era uma coisa para nós, não era uma coisa para ela.
Depois de
- Tenham misericórdia de mim
que foi a única vez que a vi usar essa palavra, passado um bocado acrescentou
- Uma mãe não tem o direito de estar viva quando um filho morreu
e morreu de lhe ter morrido o filho, com uma discrição e uma elegância exemplares. Não tinha nenhuma doença especial: apenas a obrigação de cumprir um dever e foi juntar-se ao Pedro. Não comia quase, sentada na cadeira em que recebeu a notícia. Às vezes dizia-lhe versos porque ela gostava muito de poesia. Na igreja disse-lhe um dos seus sonetos preferidos, de António Sardinha, que aprendi com o pai. Costumava contar que o pai, enquanto se arranjava de manhã, na casa de banho, recitava poemas e ela ficava a um canto, a ouvi-lo.
- O que é que a seduziu no pai, mãe?
- A inteligência
ela que começou a namorá-lo aos catorze anos. Isso e a voz do pai, tão sensual:
- Nenhum dos filhos herdou a voz do pai. Talvez o António, um bocadinho.
A sensualidade e a inteligência, ela que era uma mulher muito inteligente. Falava, por exemplo, de Bento de Jesus Caraça que tinha conhecido menina, lá na Beira Alta, com o entusiasmo com que uma adolescente fala de um actor de cinema. Durante os meses ?em que esteve a preparar-se para se reunir ao filho às vezes pegava--lhe na mão e os dedos tão suaves e doces. Não éramos ricos, teve muitos filhos, tinha de tomar conta daquilo tudo, costurava, trabalha bastante em casa e quando se arranjava, assim para jantares mais de cerimónia, ficava uma brasa e pêras. Também não era especialmente terna mas contava-me, por exemplo, que, era eu bebé, lhe doía a boca de me dar beijos. Entre tantas mulheres apenas ela me declarou isso. Deve ser tão bom doer a boca de beijar. Há alturas em que me sinto culpado pelos problemas que lhe atirei para cima: doenças (uma meningite aos oito meses durante a qual estive em coma, tuberculose aos três anos), o meu mau feitio
(- Assim tão mau, mãe?)
o meu completo desinteresse pelos estudos
(Só se preocupa em escrever e ler)
o seu receio de me ver acabar a vender pensos rápidos e Bordas d'Água nas esplanadas porque a literatura não dá de comer a ninguém, esquecida que a culpa era dela dado que nos ensinou a ler antes de entrarmos para a escola e, em mim, a doença pegou:
- Só liga a livros e a raparigas.
Eu perguntava-lhe
- Existe alguma coisa para além disso, mãe?
e o facto de não responder significava, talvez, que até certo ponto estava de acordo.
Às vezes, ao zangar-se
- Não sorrias porque estou a ralhar-te
e, quando eu sorria, era-lhe difícil ralhar-me
- Sobretudo não faças essa carinha
e eu lá mudava a carinha para o resto da descompostura. Julgo que só compreendi bem o que sentia por mim quando estava com o cancro e ela veio visitar-me. Não era mulher de lágrimas mas a cara encontrava-se cheia delas, escondidas. Agora tenho o seu retrato ali e sou eu que as escondo. Pior do que você, mãe, visto que sou mais chorão. A Zézinha nasceu quando eu na guerra e escreveu-me a contar: "não sei se estás vivo ou morto porque há um mês e meio que não sei nada de ti". Estava vivo. Não assim muito vivo, mas vivo, ao passo que quanto a si, mãe, nunca esteve tão viva como agora.
Com Deus me deito
com Deus me acho
aqui vai o Tóino
pela cama abaixo.
Tanta coisa que eu podia contar a seu respeito, e não conto, e jamais contei. Não sou capaz, tenho pudor. Enquanto a metiam debaixo da terra e não aguentei, fui-me embora. Fazia um dia de sol muito bonito. E tive a certeza de ver o Pedro ao longe. Não precisámos de falar. Quase nunca precisávamos de falar para nos entendermos. Mas a palavra mãe ia de um para o outro. E somos nós que vamos pela cama abaixo. A mãe será a última pessoa a ficar, olhando para a gente. Nascemos de si, não tem o direito de se ir embora. Não concorda? Olhe que eu ponho-me a sorrir aquele sorrisinho parvo até escutar que sim.
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