Charlie e eu

observador, 20150117
Todo o cristão deve estar disposto a morrer pela liberdade de consciência de todos os homens, sem excluir a dos que o querem matar. Nem sempre foi assim, é certo, mas quero crer que aprendemos a lição

Logo após os atentados contra o Charlie Hebdo, muitos franceses tomaram a peito a agressão e ergueram a sua voz num único grito: Eu sou Charlie! Contudo, algumas pessoas mais escrupulosas, não só não assumiram essa identidade, que entenderam incompatível com as suas convicções morais e religiosas, como fizeram gala em proclamar a sua contrária: Eu não sou Charlie!
Houve mesmo quem introduzisse uma inédita distinção entre os 'mártires' e as 'vítimas' dos atentados, como se houvesse vidas humanas de primeira e segunda categoria. Os primeiros, a bem dizer, só seriam os inocentes, porque entre os segundos seria preciso incluir aqueles que, pelos seus actos, foram, se não merecedores da selvática retaliação, pelo menos destinatários prováveis do trágico desenlace.
Curiosa esta pretensão de julgar as consciências alheias, em nome não se sabe bem de que oculta divindade, que não a cristã, que a ninguém permite tal tipo de juízos. Pelos vistos, para ser mártir mesmo a sério é preciso ser bonzinho (ou seja, como nós), porque os maus (isto é, os outros) só podem ser, no melhor dos casos, vítimas. Quer isto dizer que, se um terrorista mata um agnóstico, um ateu, um herege ou um irreverente, não faz um mártir, mas apenas uma vítima?! Sim, porque para ser mártir é preciso ser dos nossos. Estranho, não é? Até porque não é propriamente um discurso inédito: um fundamentalista islâmico não pensaria de outra forma … nem o diria melhor!
Quando, a 26 de Junho de 1963, John Fitzgerald Kennedy disse: «Ich bin ein Berliner!», não distinguiu os bons dos maus cidadãos da cidade alemã sitiada. Não se propôs apenas a defesa dos munícipes que tinham os impostos em dia, que eram responsáveis pais e mães de família, que eram impolutos funcionários e exemplares patriotas. Pelo contrário, identificou-se também com todos os outros berlinenses, fossem eles delinquentes, marginais, antigos nazis ou, até, anti-americanos, porque todos estavam ameaçados na sua liberdade e a todos importava defender, fazendo própria a sua identidade.
Quem só se revê nos que pensam do mesmo modo, não ama a liberdade, porque a reduz a um reflexo narcisista da sua própria vontade. Os ditadores também actuam politicamente em função deste enviesamento da liberdade e, por isso, consideram como traidores todos os que não se identificam com a sua ideologia. A cultura da liberdade e da democracia afere-se pela aceitação do outro na sua diferença política, cultural, religiosa e social, sobretudo quando contradiz o que pensamos e somos.
Não sou Charlie, porque não me revejo no seu posicionamento ideológico, na sua intolerância, nem na sua agressividade verbal contra a liberdade religiosa. Não subscrevo o seu fanatismo laicista, nem me agrada a sua linguagem abjecta. Mas também não aceito que haja que optar entre ser Charlie ou não ser Charlie. Essa dicotomia obedece a uma lógica totalitária: também os comunistas e fascistas entendem que todos os seus adversários são, respectivamente, fascistas e comunistas. Porém, não posso ignorar que doze homens perderam a vida num infame atentado. Não me compete ajuizar se os caídos eram santos ou pecadores; basta-me saber que eram seres humanos e, portanto, meus irmãos. E que foram traiçoeiramente assassinados.
Se amanhã alguém metralhar uma sinagoga judia, eu serei, com eles e por eles, judeu. Se uma milícia massacrar os alunos de uma escola palestiniana, norte-americana ou paquistanesa, eu serei um desses estudantes. Se algum fanático matar, em nome de qualquer ideologia ou religião, uma prostituta, um toxicodependente, um sem-abrigo, um travesti, um pagão ou um fiel de outra religião, eu serei tudo isso, sem deixar de ser cristão.
O que diferencia um cristão de um terrorista muçulmano não é que nós somos bons e eles são maus. Isso é o que, pelo contrário, nos assemelha porque, para eles, também nós somos os maus e eles são os bons. E há cristãos maus e bons muçulmanos. O que distingue o autêntico cristão dos terroristas, islâmicos ou não, é que eles são capazes de matar todos os que não pensam do mesmo modo, mesmo sendo seus irmãos na fé em Alá e no seu profeta, enquanto qualquer cristão deve estar disposto a morrer pela liberdade das consciências de todos os homens, sem excluir a de aqueles que o querem matar. Nem sempre foi assim, é certo, mas quero crer que já aprendemos essa lição.
É só isto e nada mais. Não faço minhas as declarações dos católicos que, por se considerarem justos, dão graças a Deus por … não serem Charlie. Eu também não o sou, mas estaria disposto a sê-lo, para defender a liberdade das vítimas, sejam ou não mártires. Não apesar de ser cristão mas, precisamente, porque o sou.

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