O que é que o "Charlie Hebdo" tem a ver com as meninas da Nigéria

RR on-line 12-01-2015  Eunice Lourenço

Quem não se indignar com o que se passou em Paris, dificilmente perceberá porque são tão poucas as notícias sobre o que se passa na Nigéria.     

Na semana passada, enquanto os nossos olhos e os olhos da Europa se focavam em Paris, os terroristas do Boko Haram terão matado dezenas, centenas ou mesmo milhares de pessoas na cidade de Baga, nordeste da Nigéria. As informações são escassas: um militar disse à BBC que poderão ter sido mortas duas mil pessoas, a Reuters primeiro fala em, pelo menos, 100 mortos, depois diz que há relatos de dezenas de mortos.

Ninguém sabe ao certo porque ninguém viu, porque não há ninguém em Baga que possa relatar o que lá se passou. O que há são alguns, poucos, relatos de sobreviventes que conseguiram fugir, uns através do lago Chade, outros para Maiduguri, a capital do Estado de Borno. É a partir desses relatos que se chega aos milhares de mortos.

Perante estas poucas notícias que foi possível dar do que se passa num território controlado por um grupo terrorista, houve quem lamentasse que se falasse tanto de Paris e tão pouco da Nigéria e que tantos se indignassem com o que aconteceu na redacção do "Charlie Hebdo" e tão poucos com o que se passa em África.

Convém lembrar: todos nós, jornalistas ou não, preocupamo-nos mais com o que se passa na porta ao lado da nossa e que mais facilmente nos pode acontecer a nós do que com o que se passa noutro lado do mundo. A proximidade – física e cultural - é um critério jornalístico, tal como é um critério de interesse geral: os leitores – de jornais ou na internet – lêem muito mais notícias sobre o tempo que vai fazer no fim-de-semana do que qualquer notícia de Internacional, por mais chocante ou importante que seja.

Mas, além da questão da proximidade, há uma outra causa – mais grave, profunda e incontornável – que tem tornado cada vez mais difícil dar notícias da Nigéria. Tal como da Síria. Ou de territórios do Iraque controlados pelo chamado Estado Islâmico. É a completa falta de liberdade nesses territórios.

Na Nigéria e sobretudo nos territórios tomados ou ameaçados pelos Boko Haram não há pingo de liberdade. De expressão, nem de informação. Não há liberdade de educação, de religião, de circulação. Não há segurança. Não há justiça. Não há Estado. Não há líderes políticos que vão para a rua dizer 'não' ao terror e ao medo. Chega-se ao ponto de o Presidente da Nigéria ter condenado os ataques em Paris, mas não se saber se disse alguma coisa sobre os mais recentes massacres no seu próprio país.

Não há jornalistas. Nem daqueles 'malucos dos freelancers'. Não há acesso livre à Internet. E não há equipas médicas, nem voluntários de uma qualquer ONG, que tantas vezes lançam à distância um grito de alerta. E nem sequer há missionários, geralmente os últimos a sair ou a tombar, permanecendo até ao limite junto daqueles que sofrem, seja qual for a sua raça ou credo.

Só há mal, destruição. Mas – atenção – este abandono começa geralmente com a indiferença ao mal que acontece ao outro. Com a subtil aceitação de um argumentário que vai justificando violência aqui e ódio acolá. A legitimação do ódio começa quando se pergunta o que terão feito as vítimas para serem escolhidas como algo e cresce quando se começam a encontrar justificações.

As meninas que estudavam na Nigéria e foram raptadas em Abril, também estavam a pedi-las? E as crianças que andavam na escola em Peshawar e os pais delas, que insistiam em investir na sua educação, também se puseram a jeito? Todos eles também desafiavam interditos, também desafiavam os limites impostos por outros à sua liberdade.

Não se pode relativizar o que se passou em França, tal como não se pode relativizar o que se passa na Nigéria. E não relativizar também é não pôr em relação as 17 mortes de Paris com as dezenas, centenas ou milhares de Baga. Cada uma destas vidas, cada uma, merece a nossa indignação. Reconhecê-lo é importante para perceber o que é o mal e que é o mesmo mal que mata em Paris, na Nigéria ou em Peshawar.

Quem não se indignar com o que se passou em Paris, quem não ficar com as entranhas revoltadas com as mortes dos cartoonistas que insultavam muçulmanos e parodiavam polícias, quem não se comover com a morte do agente muçulmano que morreu a defender a sua liberdade e a deles, dificilmente perceberá porque são tão poucas as notícias sobre o que se passa na Nigéria.

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