Ensaio: A Rainha das Liberdades
A liberdade de expressão não é apenas mais uma liberdade. É a rainha das liberdades. Batermo-nos por ela, em vez de procurarmos os seus limites, é o índice mais seguro da qualidade da cultura política
Não será muito polémica a afirmação de que a liberdade de acção é um valor. Se o meu comportamento não causar prejuízo a ninguém, é um bem que eu possua a liberdade de o praticar. É certo que se coloca a questão de saber se não devem ser proíbidos alguns comportamentos prejudiciais ao próprio autor ou se não devem ser impostos outros que lhe são favoráveis e que este não praticará de modo espontâneo. Mas a restrição da liberdade em razão do melhor interesse do agente é uma medida excepcional, reservada a determinadas categorias de pessoas que se entende serem incapazes de agir sistematicamente no seu melhor interesse, como os menores ou os loucos, ou a determinados tipos de comportamento que se entende traduzirem invariavelmente escolhas incorretas, como a venda de órgãos ou a prestação de serviços como objecto do sadismo alheio. Ressalvadas estas situações anómalas, é praticamente indiscutível que a liberdade de acção é um bem.
Claro que o valor da liberdade não é absoluto. Muitos comportamentos implicam prejuízos, ou o risco de prejuízos, para terceiros, nomeadamente para a sua vida, integridade física, propriedade, dignidade social ou privacidade, para citar apenas alguns dos bens comummente ameaçados pelo exercício da liberdade pessoal. Ninguém julga que a sociedade deve tolerar o homicídio, a ofensa corporal, o furto, a discriminação racial nas escolas ou a devassa da vida privada. Embora tais condutas traduzam um exercício da liberdade de acção, há outros bens ou interesses sacrificados pela sua permissão cujo valor é, nas circunstâncias relevantes, superior ao da liberdade. Em termos muito gerais, a vida em sociedade implica uma ponderação ou um compromisso permanentes entre a liberdade de acção e a tutela daqueles bens ou interesses ameaçados pelo exercício desta. Suponho que seja essa a ideia que se pretende transmitir com a chachada, tão comum quanto inconsequente, de que «a minha liberdade termina aí onde começa a do meu vizinho». De resto, é justamente a importância das restrições à liberdade individual que constitui a mais básica, e segundo algumas construções teóricas, a única, justificação da existência de uma organização política de base territorial – o Estado – cujas funções essenciais são criar, aplicar e executar leis que limitam a liberdade das pessoas se comportarem como lhes aprouver.
É natural que se parta destas premissas para a conclusão de que a tutela da liberdade de expressão, como a de qualquer manifestação da liberdade, deve estar sujeita aos limites ditados pela ponderação circunstancial de bens ou interesses de sentido contrário. É essa a forma de pensar subjacente a algumas das afirmações que têm sido feitas na sequência da tragédia parisiense da passada semana, em que dois irmãos muçulmanos decidiram vingar com selvajaria as ofensas religiosas alegadamente perpetradas pelos autores do jornal satírico Charlie Hebdo. Refiro-me àquelas vozes que, pese embora o repúdio enérgico e incondicional pelos meios que os autores do atentado elegeram para reparar as ditas ofensas, não deixam de assinalar que a liberdade de expressão, designadamente através da sátira, não pode assumir tal extensão que compreenda a blasfémia, o insulto às convicções ou sentimentos religiosos dos membros de uma certa confissão ou credo. Censurável é o recurso ao terror como meio para reparar uma ofensa cuja relevância e consequências devem ser apuradas pelos «meios institucionais», nomeadamente os tribunais. Por outras palavras, liberdade de expressão não é «licenciosidade», a permissão para vilipendiar as crenças alheias ou escarnecer das convicções profundas de determinados indivíduos ou grupos.
Este discurso tem uma aparência de grande razoabilidade, mas a verdade é que se baseia numa analogia equivocada entre liberdade de acção e liberdade de espírito, nela compreendida não apenas a liberdade radicalmente individual ou privada de consciência – ninguém senão o próprio sujeito pode ser senhor dos seus pensamentos -, mas as liberdades de expressão, informação e imprensa através das quais aquela se reveste de um importância pública. Ora, há três diferenças muito significativas entre liberdade de acção e de expressão.
Em primeiro lugar, uma diferença de ordem ontológica, ou seja, relativa à natureza ou qualidades das realidades em causa. A acção pertence à ordem material, no sentido em que constitui um evento situado no espaço e no tempo, sendo, por essa razão, irreversível. Não é possível reverter a acção de agredir uma pessoa, de incendiar um automóvel, de fazer uma promessa ou de comer um prato de lentilhas. É possível, em ocasiões raras, eliminar os efeitos da acção através de um comportamento de sentido contrário, como seja o de demolir um muro ilegalmente construído; não sendo nem sequer isso possível, resta encontrar paliativos ou sucedâneos para a tutela dos interesses que determinado comportamento sacrificou, como seja o pagamento de uma indemnização. As ideias que se expressam publicamente, por outro lado, pertencem à ordem intelectual, na medida em que elas não constituem eventos situados no espaço e no tempo mas representações mentais que podem ser modificadas, refutadas ou desmentidas a qualquer momento através da operação normal das faculdades do espírito. Por essa razão, o potencial lesivo do exercício da liberdade de expressão não é comparável ao que resulta da acção. Há uma diferença ontológica irredutível entre partir o tornozelo da vizinha e fazer chacota das suas crenças religiosas.
Uma segunda diferença é de natureza axiológica, isto é, prende-se com os juízos de valor (e de desvalor) que fazemos sobre o exercício da liberdade. A liberdade de acção está em permanente tensão com outros interesses valiosos, de tal modo que a sua valoração concreta implica quase sempre, recorrendo a uma metáfora contabilística, o balanço dos ganhos e dos prejuízos. Já o exercício da liberdade de expressão é, como reparou John Stuart Mill nas notáveis páginas que lhe dedicou em On Liberty (1859), uma fonte segura de lucro moral. Com efeito, o juízo, crença ou opinião cuja liberdade de exprimir em público está em causa pode ser integralmente verdadeiro, parcialmente verdadeiro ou integralmente falso. Ora, nota Mill, em qualquer destes casos há toda a vantagem em que tal liberdade seja respeitada: no primeiro caso, a verdade substitui o erro; no segundo caso, dá-se a oportunidade de uma síntese feliz de opiniões contrárias que encerram fragmentos da verdade; e no último caso, o confronto com o erro permite a corroboração da verdade do juízo contestado e a redescoberta dos seus fundamentos e significado que resulta do esforço intelectual despendido na sua defesa íntima ou pública. O único prejuízo que provém do exercício da liberdade de expressão é o desconforto emocional que pode resultar do questionamento das nossas convicções. Porém, o prejuízo é apenas aparente, na medida em que o que justifica a adesão a determinadas crenças e valores é a razoabilidade dos juízos nas quais se baseia, e que só o confronto com afirmações e opiniões contrárias permite testar.
Finalmente, há uma diferença de natureza política entre as liberdades de acção e de expressão. A política respeita ao modo como tomamos decisões que a todos vinculam sobre a vida que estamos condenados a partilhar, pela nossa condição de seres que coexistem num espaço finito e num tempo determinado. É necessário decidir qual a pretensão que prevalece, e em que termos exactamente, no conflito entre o indivíduo industrioso interessado no gozo exclusivo dos frutos do seu trabalho e o indivíduo inactivo, por preguiça ou por incapacidade, interessado em deles desfrutar gratuitamente. Se nada for decidido nesta e em inúmeras outras matérias que a todos respeitam, os protagonistas de situações deste género agirão como lhes aprouver, caso em que a sua forma de vida se traduz numa anarquia em vez de uma ordem política. Ora, esta necessidade de decidir não se estende ao domínio das convicções. Podemos perfeitamente coexistir numa esfera pública em que se digladiam afirmações e opiniões contrárias sobre os mais diversos assuntos, sem qualquer necessidade de alguma autoridade decretar qual a posição mais plausível. Por outras palavras, os assuntos do espírito não têm uma natureza política, porque quanto a eles não há nenhuma necessidade de impor a ordem.
Mas a singularidade política da liberdade de expressão não se esgota aqui. Há vários tipos de regime político, que são as formas como as comunidades humanas se governam, ou seja, como adoptam decisões que a todos vinculam. Nos regimes democráticos, os destinatários das decisões políticas são também, directa ou indirectamente (através dos representantes que escolhem), os seus autores. É assim porque a democracia se baseia no princípio da igualdade política, segundo o qual todos os cidadãos têm igual direito de participar na formação da vontade colectiva que ordena as relações entre si. Ora, como é impossível obter a unanimidade entre os cidadãos sobre as questões da vida colectiva, e é impossível suspender a decisão política até que se venha a formar um putativo consenso, a decisão democrática repousa no critério da maioria, nos termos do qual é dado igual peso aos juízos de todos os cidadãos e eleito como critério de decisão aquele que reunir mais de metade do número de votos. A regra da maioria é um sucedâneo mundano do autogoverno perfeito, que seria assegurado se nenhum cidadão estivesse submetido a decisões políticas que não subscreve.
Já nos assuntos do espírito, nomeadamente na expressão pública de opiniões, não há nenhuma razão para restringir a liberdade de cada um opinar e julgar segundo «a sua própria cabeça». Não carecemos, em matéria de expressão, de recorrer ao substituo imperfeito do autogoverno que é a regra da maioria, pela simples razão de que podemos conviver com o conflito de opiniões. Qualquer regime democrático que restrinja a liberdade de exprimir determinadas opiniões atenta contra os próprios fundamentos da sua legitimidade, na medida em que suprime, através de uma manifestação imperfeita de democracia, o governo radicalmente democrático da liberdade de espírito. A liberdade de expressão é, por essa razão, um pressuposto necessário da legitimidade democrática, o fundamento mais profundo do nosso modo de vida colectivo. A ordem democrática é moralmente tolerável justamente porque convive com a anarquia espiritual que a liberdade de opinião assegura; sem esta parceria entre autoridade e liberdade, a democracia resvala para o domínio da tirania, passa a encarnar mais uma forma de despotismo.
Está claro que nem a liberdade de expressão, pese embora a sua especial dignidade, é um valor absoluto. Há cinco tipos principais de excepção legítima ao regime normal da expressão protegida. Em primeiro lugar, a afirmação de factos falsos ou inventados, designadamente por órgãos de informação, por corresponder à violação de um dever básico de honestidade na participação no espaço público. Em segundo lugar, a utilização da linguagem para injuriar indivíduos ou grupos, ou seja, não com a intenção de comunicar um facto ou opinião, mas com a finalidade exclusiva de ofender. Em terceiro lugar, a utilização da linguagem para causar efeitos na ordem material, como a afirmação falsa de que há um incêndio numa sala cheia para provocar o pânico ou o incitamento à violência. Em quarto lugar, a expressão de certos factos ou opiniões no âmbito de uma relação de autoridade (e.g., professor/aluno ou patrão/empregado) com o intuito de explorar perante uma audiência a posição de subordinação do interlocutor. Finalmente, a devassa de aspectos da vida pessoal que não têm a menor relevância pública, mas que correspondem às pulsões voyeristas de alguns segmentos da população. A estas pode acrescer um conjunto muito limitado de situações em que, por razões variadas, nomeadamente de interesse público, o segredo – comercial, de justiça ou de Estado – merece tutela jurídica. Muitas destas excepções são delimitadas através do recurso a conceitos indeterminados, como «ofensa», «incitamento» ou «interesse público», pelo que a sua aplicação a casos duvidosos deve, dado o estatuto fundamental da liberdade de expressão, estar sujeita ao limite ditado pela máxima in dubio pro libertate.
Um sintoma da degradação a que chegou a compreensão da liberdade de expressão é que se despende mais energia intelectual na enumeração e análise das excepções do que com o exame cuidado do princípio. Uma consequência desse estado de coisas é que casos circunscritos acabam rapidamente por se converter em categorias amplas, como quando o conceito de ofensa é estendido do âmbito pessoal – a ofensa a determinados indivíduos ou grupos – ao âmbito intelectual – a absurda noção de que se podem ofender convicções ou, na versão mais comum, apesar de inane, os «sentimentos» de certas pessoas. Em vez deste ataque insidioso à liberdade de expressão, seria mais valioso pensarmos na forma como o espaço público deve ser regulado para que todos tenham a oportunidade de exprimir as suas convicções e para que a informação seja independente de interesses organizados empenhados em condicionar a opinião pública.
A liberdade de expressão não é apenas mais uma liberdade. É a rainha das liberdades. Batermo-nos por ela, em vez de andarmos à procura dos seus limites como de uma agulha no palheiro, é provavelmente o índice mais seguro da qualidade da nossa cultura política. É esse o significado histórico da marcha que anteontem encheu as principais artérias de Paris. É possível que a democracia liberal não seja o fim da história. Mas milhões de cidadãos ergueram-se para prestar uma homenagem ao fundamento do seu modo de vida colectivo e anunciar ao mundo que as notícias da sua morte são manifestamente exageradas.
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