Os cortesãos cegos

JOÃO CÉSAR DAS NEVES
DN 2011-01-24
Vivemos numa sociedade oficialmente livre-pensadora, sem tabus, preconceitos ou dogmas. Estão criadas as condições para os tabus mais acéfalos, preconceitos mais avassaladores, dogmas mais totalitários, por não existir sequer a disposição para reconhecer essa possibilidade.
Um dos contos mais geniais da literatura revela onde pode chegar a cegueira ideológica. Publicado na colectânea medieval espanhola El Conde de Lucanor de 1335 (Enxemplo XXXII - de lo que contesció a un Rey con los burladores que ficieron el paño), foi vulgarizado por Hans Christian Andersen como As Roupas Novas do Imperador (Kejserens nye Klæder) em 1837. Os cortesãos, a quem foi dito que o tecido do traje do imperador é invisível a quem não é filho de seu pai, estão dispostos a exaltar a beleza das vestes, sem conseguirem admitir que o rei vai nu. Sintomaticamente, na versão de Andersen, quem não vê as roupas é estúpido ou incompetente, mas na Idade Média interessava mais a família que a competência.
Não faltam exemplos desta cegueira. Há anos assistiu-se à derrocada do glorioso paraíso colectivista da União Soviética que tantos louvaram acefalamente durante décadas. Antes desfizera-se o mito da supremacia da raça ariana. Mas a sociedade sem tabus tinha de ter uma obsessão ainda mais infantil. O nosso dogma é a equivalência entre os estilos de vida.
Todas as civilizações e culturas sempre souberam que a família, onde as gerações se unem e sucedem, amando-se, educando-se, sustentando-se, perdoando-se, constitui a base da sociedade. Sempre houve alternativas, avaliadas de forma diferente nas várias culturas, mas nenhuma as viu como semelhantes à célula vital. A cultura ocidental contemporânea é a primeira que tenta negar a evidência.
Começa logo por não ser possível sequer falar de família. Agora é "família tradicional", porque alegadamente há várias. E aqui o adjectivo é pejorativo. Depois um portentoso aparato mediático, filmes, televisão, revistas, livros, jornais, lança-se numa campanha de propaganda massiva a favor das alternativas, adultério, divórcio, promiscuidade, concubinato, perversão, deboche, etc. É tudo excelente.
A origem desta tese aberrante é compreensível. As gerações anteriores, defendendo ferozmente a família, costumavam desprezar quem vivia nessas alternativas. Isso é inaceitável, porque todos devem ser respeitados, qualquer que seja a sua opção. Mas uma coisa é respeitar as pessoas, outra é respeitar as opções. Aí surgiu o erro que gerou o actual tabu. Todos respeitamos e cuidamos dos doentes, mas ninguém acha que a doença é igual à saúde. Aliás, precisamente por estarem a sofrer, os doentes são ainda mais acarinhados que os demais, por viverem pior. As disfunções familiares são doenças sociais. Sem desprezar ou censurar os que as sofrem, deveriam ser acudidos e respeitados, trazendo-os à condição saudável.
Em vez disso assistimos a um delírio de argumentação que, partindo de um conceito distorcido de autonomia pessoal, exalta aquilo que traz infelicidade, miséria, desgraça. Porque, vale a pena lembrar, até em termos agregados são já visíveis os resultados desta atitude. Todos reconhecem que, naturalmente, a sociedade ocidental se encontra em decadência demográfica, política, social e moral. Porque defender a família é considerado conservador, e o contrário de conservador é destruidor.
Apesar disso as luminárias contemporâneas estão dispostos aos maiores malabarismos para sustentar o axioma de equivalência contra qualquer evidência. Trata--se de um tabu absoluto e indiscutível: cada um vive como quer e ninguém tem nada com isso. Hoje, discute-se e critica-se tudo, a todos os níveis, menos aquilo que na nossa vida é mais influente sobre todos.
Quando surgem as tragédias, inevitáveis em estilos de vida desviantes, aparecem logo alcateias de comentadores para assegurar que o sucedido nada tem a ver com a perversão ou a opção de género, porque coisas dessas acontecem em todo o lado. Como os cortesãos de Andersen, nem se dão conta do seu ridículo.

Comentários

Francisco Melo disse…
No livro de Luigi Giussani, «O Senso Religioso», comentando um pesquisador ganhador do prémio Nobel, Alexis Carrel, sobre a vida moderna, diz ele que a palavra "raciocínio" poderia ser substituída pela expressão "dialética em função de uma ideologia". No meu entender, esse cientista diz o que diz em função do que vai observando nos seus colegas pesquisadores: não interessa mais a realidade, mas o que a ideologia deseja. Assim, raciociana-se muito e observa-se pouco, queixa-se o cientista. Este tipo de comportamento (desonesto e nada próprio de pesquisas imparciais) surgiu com o renascimento, quando houve pensadores que foram buscar as asneiras da filosofia greco-romana para atacar a IGREJA e os valores cristãos e, hoje, estamos a ver isso de modo mais visível e descarado. Comentando monsenhor Giussani sobre esse cientista, diz o pequisador: «De facto, a nossa época de ideologias, ou seja, na qual, em vez de se aprender da realidade todos os seus dados, construindo sobre ela, procura-se manipular a realidade segundo a coerência de um esquema fabricado pelo intelecto (tantas vezes disparatado e de perversas consequências). Assim, o triunfo das ideologias consagra a ruína da civilização.» Este comentário está logo no início do livro e tem tudo a ver com o que se passa nos tempos actuais. Suponho que seja essa a "educação de melhor qualidade" que a ministra da educação pretende, com o aval do primeiro ministro, dar às crianças nas escolas... Não só conhecimento humano genuíno, mas manipulação e condicionamento nas ideologias da cultura da morte.

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