E, no entanto, discute-se

Público, 2011-01-11 Pedro Lomba

Começo com uma pergunta: por que motivo o carácter de um político não pode ser discutido e julgado em democracia? Se não ocorre a ninguém abster-se de conhecer quem é o seu advogado, contabilista ou baby-sitter, por que deveria ser diferente com quem desempenha cargos políticos?
Eu sei de onde vem a confusão implícita na pergunta. Vem desta era socrática que dramaticamente baixou os nossos níveis de exigência. A toda e qualquer tentativa de escrutínio público, alguns seres pensantes e outros animados responderam com a ideia de que a questão do carácter tem de estar banida do debate político. Porquê? E como é possível existir debate sem que a questão não esteja de alguma maneira presente?
Esta diminuição parece tão fora de propósito que nem sequer resiste a um cursivo exame histórico. Se o carácter não fosse um tema legítimo, alguns dos mais famosos textos políticos acabariam no lixo da retórica do "terrorismo pessoal" e das "campanhas sujas" modernas. As Catilinárias de Cícero, proferidas no Senado de Roma contra o demagogo Catilina, seriam vistas como um baixíssimo "ataque pessoal". Quase toda a filosofia política medieval preocupada com a rectidão dos príncipes - "serás rei se fizeres o bem; se não o fizeres, não serás" - seria igualmente reprovada. E o que diríamos do discurso célebre e potentíssimo de impeachment dito e escrito por Edmund Burke contra o governador da Índia Warren Hastings, sobre quem pesavam suspeitas de corrupção e arbitrariedade?
Os julgamentos de carácter são tão essenciais como inescapáveis na vida política. E não têm necessariamente de ser negativos. Churchill só foi escolhido para liderar a Inglaterra na 2.ª Guerra Mundial devido aos seus atributos pessoais de liderança. Quando a guerra acabou, os ingleses dispensaram-no.
Mas precisamos de esclarecer o que deve ser entendido por "carácter" para evitar areias movediças de hipocrisia e moralismo contra quem exerce cargos de poder; para perceber que a apreciação do carácter de um político ainda é uma dimensão racional da política e não um domínio do "vale tudo". Numa época de escrutínio indistinto sobre figuras políticas, é tão importante que o poder não seja um privilégio injustificado como um fardo ominoso para aqueles que o detêm. Precisamos por isso de regras acerca do que podemos e não podemos julgar.
Aqui, convém-nos recordar uma útil distinção entre moralidade pública e moralidade privada. No tempo do caso Clinton-Lewinsky, alguém deu o seguinte exemplo para concretizar a distinção. Imaginem um Presidente que se muda para a Arábia Saudita para poder casar com quatro mulheres. Primeiro: este Presidente assumir-se-ia como polígamo, o que seria uma violação da moralidade privada (a maioria dos portugueses considera imoral a poligamia, também punida pelo código penal). Depois, a sua ausência voluntária torná-lo-ia incapaz de exercer os seus deveres e isso representaria uma violação da moralidade pública.
Muita gente ignora esta distinção entre moralidade pública e moralidade privada e as relações entre as duas. Mas ela é sumamente relevante: permite-nos localizar as "infracções" políticas no código moral a que pertencem, no sentido de apurar quais os deveres a que um político estaria sujeito.
Se me perguntarem qual é o escrutínio que nos deve primariamente interessar quando julgamos um responsável político, resposta óbvia: a moral pública, o modo como os políticos exercem os seus poderes, como respeitam as convenções democráticas, como usam os dinheiros públicos, como se comportam em funções.
Se me perguntarem se a moralidade privada não pode contaminar a moralidade pública, respondo-vos também que sim (embora não seja certamente a regra por causa do risco que sempre paira de as nossas discordâncias morais não permitirem um juízo claro de censura).
Mas não nos deixemos enganar. Podem dizer que a avaliação do carácter não é uma questão política; ou que não traz dividendos eleitorais. E, no entanto, ele discute-se, sempre se discutiu. Jurista

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