Mulheres sem homens

 Público 2011-01-06  Pedro Lomba

Saber que a vida comporta uma duração média ou, no suave vocabulário da época, uma esperança média parece uma das mais democráticas promessas a que podemos razoavelmente aspirar. Imagino que no século XVIII um cidadão de Bragança desconhecesse por inteiro quanto tempo os seus compatriotas de Vila Real, quanto mais em Lisboa, estariam vivos. A ignorância não traz felicidade, mas isso prevenia-o de viver a sua vida na esperança - marquem a palavra - de viver o tempo de outras vidas.
Mas não existe democracia sem estatísticas e digamos que ajuda conhecer o dia e hora em que a maioria dos nossos concidadãos passa o Rubicão para nunca mais voltar atrás. "A morte de uma pessoa é uma tragédia, um milhão de mortes é uma estatística", afirmou com a sua conhecida benevolência o velho Estaline. Invertendo a frase poderíamos dizer: a vida de uma pessoa é uma bênção, um milhão de vidas é uma estatística. Que impacto tem em nós esse milhão estatístico senão o de se transformar num horizonte que esperamos realizar um dia tal como outras médias democráticas? A esperança média de vida é também a nossa esperança.
Em Portugal, de acordo com o INE, essa média vital é de 74,8 anos para os homens e de 81,3 para as mulheres. Significa tudo aquilo que já sabemos, que em resultado de muitas melhorias a longevidade disparou, que morremos mais tarde e esperamos morrer mais tarde. Sejam bem-vindos ao século XXI.
Mas o que estes dados significativamente também demonstram é outra realidade mais crua: as mulheres tendem a morrer mais tarde do que os homens e em muitos casos bem mais tarde. Se entendermos a vida como uma corrida em que vamos dando sucessivas voltas à mesma pista, verificamos que os homens desistem ou são forçados a desistir antes das mulheres. Não interessa se abatidos por coronárias ou outras maleitas, mas são mais as mulheres que perdem os maridos, os cônjuges, os companheiros em todas as acepções da palavra, do que o contrário. E, acima disso, são as mulheres as primeiras espectadoras da decadência e doença dos homens. Cabe-lhes esse papel desastroso.
Ontem, num café, ouvi uma dessas mulheres anciãs segredar para outra: "É difícil vê-los assim." A conversa pressupunha que ambas sabiam do que falavam. E na verdade sabiam. Estavam as duas aparentemente saudáveis e resistentes em posição de espera. Os maridos tinham-se tornado finalistas; e elas iam fazendo o que tinham de fazer. Cuidavam deles o melhor que podiam.
Espero não estar a ser demasiado macabro. Mas a verdade é que parecemos desatentos a esta precedência de género. Será este um preço das sociedades masculinas em que os homens ainda conservam o poder e parecem indiferentes à sua própria mortalidade? Dir-se-á que sempre foi assim desde o passado em que corriam o risco de não regressar vivos da guerra. Mas do que se trata aqui é de outra coisa, de que até em tempo de paz aquela precedência naturalmente existe.
Quando era pequeno, vi sempre muitas mulheres vestidas de preto, soturnas como nos poemas de Lorca. Não percebia porquê. Vi sempre mais mulheres enlutadas do que homens. Vi-as sempre com a sensação de que tinham passado por aquilo - a morte dos homens - com dramática lucidez e resignação. Como se a viuvez fosse uma condição caracteristicamente feminina, penso muitas vezes naquilo que esta antecipação nos diz sobre as mulheres, sobre os homens, sobre uns e outros. Nada é fácil. Jurista

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