Continuamos a empurrar os problemas com a barriga...
Públic 2011-01-14 José Manuel Fernandes
Paul Krugman tem razão: a taxa de juro do leilão da dívida foi "pouco menos que ruinosa"Esta semana um amigo meu interrogava-se não sobre se deveria aconselhar os filhos a procurarem um futuro fora de Portugal - isso já estava a acontecer -, mas sobre se algum dia, mais tarde, eles teriam um futuro em Portugal. No mesmo dia, uma jovem aluna, ao ler um título do Diário de Notícias que indicava durarem os encargos das PPP mais 72 anos, confessava que já tinha pensado procurar um casamento de conveniência nos Estados Unidos para se poder naturalizar imediatamente. Não soube que responder-lhes.
Foi por isso quase com um sentimento de revolta que ouvi, na quarta-feira, as reacções entusiasmadas ao "sucesso" do leilão de dívida pública à taxa de 6,716 por cento (um preço "muito bom", delirou mesmo o primeiro-ministro). Paul Krugman chamou-lhe, porém, "leilão pírrico" e previu que com "mais alguns sucessos destes a periferia europeia será destruída". É fácil explicar porquê: com a inflação limitada a dois por cento pelo Banco Central Europeu, Portugal precisaria de crescer a quase cinco por cento ao ano para conseguir, sem alienar património, começar a amortizar as suas dívidas. Isto quando, nos últimos dez anos, praticamente não crescemos e, em 2011, o Banco de Portugal prevê mesmo que encolhamos 1,3 por cento. Ou, como se escrevia na The Economist, "a taxa [de 6,716 por cento] é insustentavelmente alta para um país com tanta dívida pública. Se Portugal quer continuar solvente, o custo dos seus empréstimos tem de descer substancialmente".
Não deviam, pois, estalar rolhas de champanhe quando, ao contrairmos dívida a esta taxa de juro, estamos a cravar mais um prego no nosso caixão. Isso só aconteceu porque, em Portugal, e também na Europa, domina uma visão de curto prazo. Os líderes preocupam-se apenas com o mês seguinte e não, como os meus interlocutores, com as próximas décadas.
Sejamos, pois, claros: Portugal encontra-se numa situação semelhante à da generalidade dos países do Sul da Europa, que, esta semana, foi muito bem retratada por Wolfgang Münchau, colunista de assuntos europeus do Financial Times, e por Ambrose Evans-Pritchard, editor de economia internacional do Telegraph de Londres: estes países têm, ao mesmo tempo, de conseguir recuperar a competitividade perdida das suas economias e de controlar as suas dívidas, mas realisticamente só conseguirão, nas actuais condições, enfrentar um desses problemas, nunca os dois ao mesmo tempo. Só através de uma desvalorização (impossível no quadro da união monetária) ou do reescalonamento da dívida (um tabu por enquanto) poderão países como Portugal sair do beco onde se meteram.
Segundo andamento: o Primeiro Dilema
Há uma pesada sensação de déjà vu na coreografia dos líderes europeus e portugueses a propósito de um eventual recurso de Portugal ao fundo de emergência europeu (e ao FMI). Passo a passo, parece estarmos a seguir as pisadas da Grécia e da Irlanda. Ambrose Evans-Pritchard notou até uma particular coincidência: a precipitação do processo de ajuda ocorreu, na Irlanda, quando o governador do Banco Central entrou em dissonância com o Governo de Dublin; em Portugal, Carlos Costa ainda não divergiu de Teixeira dos Santos, mas uma das suas vice-governadoras, Teodora Cardoso, já o fez. E o que é que ela disse? Que tudo poderá ser "mais fácil, se tivermos um apoio externo, desde logo porque isso permite que o ajustamento não seja tão abrupto".
Em editorial, o Financial Times defende uma posição semelhante: "Ao terem recusado recorrer aos fundos europeus até não terem outra alternativa, Atenas e Dublin tornaram o processo de resgate mais confuso e penoso do que o necessário. Lisboa está a repetir o erro, ao encarar como uma desgraça nacional pedir ajuda".
Ambas estas abordagens partem do princípio do que será melhor para Portugal, e ambas convergem num ponto: quando mais depressa chegar a ajuda, menos dolorosa será a terapia. E até nem é difícil perceber porquê: os juros que teríamos de pagar pelos empréstimos se recorrêssemos depressa à ajuda europeia seriam sempre menores do que aqueles que pagámos quarta-feira no leilão da dívida. Só aí estaríamos a ganhar, e muito.
Por outro lado, apesar de toda a retórica sobre "estarmos a fazer o trabalho de casa", a verdade é que ainda se arrasta os pés. Basta pensar no famoso pacote para a competitividade levado por José Sócrates a Bruxelas, e que não passava de uma mão cheia de nada e de outra de coisa nenhuma. Um empurrãozinho de fora para tomarmos juízo e darmos corda aos sapatos seria, de novo, bem-vindo.
Intermezzo: os Desvairados
Entretanto prossegue nas estradas do país uma campanha eleitoral onde desvairadamente se grita que as nossas aflições derivam "de uma acção especulativa que tem como objectivo forçar a entrada do FMI em Portugal", algo que "vem de fora mas tem cumplicidades cá dentro", como disse Alegre. Claro que esta gritaria contra "os mercados" é completamente inútil, pois estes não se impressionam por serem considerados "bodes expiatórios", como notou António Vitorino num jantar no Círculo Eça de Queiroz.
Claro que a campanha de Alegre não chega aos delírios retóricos do seu apoiante Boaventura Sousa Santos, para quem os mercados "são um bando de criminosos", "uns mafiosos" que cometem "crimes contra a humanidade". Mesmo assim, falha o ponto essencial: Portugal depende da boa vontade dos credores porque se deixou endividar a um ponto que não vive sem empréstimos constantes. Pior: num país que tem de importar 75 por cento dos cereais que consome, imaginar que se pode romper com os mercados é pura estultícia e, em campanha eleitoral, só serve para alimentar a demagogia.
É que, como escrevia a revista The Economist, "para todos aqueles que se deram ao trabalho de observar, tem sido evidente de há bastante tempo que o país estava a viver acima dos seus meios. Mais tarde ou mais cedo era inevitável que acabasse na bancarrota, e foi à bancarrota que Portugal agora chegou". Na verdade, tecnicamente, ainda não chegámos à bancarrota, mas este artigo da Economist também não é desta semana, foi publicado a 6 de Fevereiro de 1892. Alegre pode conhecer Os Lusíadas de cor, mas se conhecesse melhor a nossa história económica talvez soubesse que não nos convinha repetir esse colapso financeiro de que levámos décadas a sair e que conduziu, em última análise, a Salazar.
Terceiro andamento: o Segundo Dilema
Se nos abstrairmos dos cálculos políticos e partidários, assim como dos jogos de orgulho pessoal, um eventual pedido de ajuda de Portugal também deve ser analisado numa perspectiva europeia. É que, como se escrevia no Wall Street Journal, um eventual resgate de Portugal - cada vez mais provável, mesmo que no leilão aparecessem compradores, como apareceram - "não impediria que os problemas europeus com as dívidas soberanas continuassem a alastrar".
O raciocínio dos editorialistas do WSJ era semelhante ao que Vitorino expusera no jantar queirosiano: ao pensar que podem resolver os problemas da dívida soberana separando mais uma fatia como quem corta um salame, a Europa não está a perceber que tem é de tratar de todo o salame, sob risco de não conter a infecção. É por isso que ele se opõe ao resgate de Portugal.
Falta, contudo, considerar as alternativas. Isto é, pensar no que poderá fazer a Europa para além de, por exemplo, aumentar o tamanho do fundo de emergência ou flexibilizar as suas regras. Wolfgang Münchau fazia no FT algumas sugestões e Vitorino também entreabriu algumas portas. Münchau reconhecia, no entanto, que as suas propostas eram "politicamente inconcretizáveis", o que se compreende se pensarmos que elas passariam sempre, como disse Vitorino, por "novas transferências de soberania sem mexer nos tratados", logo sem ter de passar pelo crivo dos eleitores. Para Portugal o cenário poderá ainda ser pior, ocorrendo aquilo a que chamou "transferências de soberania assimétricas". Já para a Europa representaria a criação de uma união política nas costas dos cidadãos, um movimento contra o qual alertou, também esta semana, o influente economista alemão Otmar Issing, um dos "pais" da moeda única.
Daí que, desculpem a minha frontalidade, tenha de colocar um segundo dilema associado à vinda ou não do FMI: será melhor uma transferência temporária de soberania até ultrapassarmos esta crise ou uma transferência permanente de soberania para uma Europa que se tornaria institucionalmente desigual?
Não sei a resposta. Só sei, e não esqueço, que estamos neste buraco por causa de uma gestão política irresponsável. Não foram "os mercados" que nos aprisionaram, fomos nós que nos colocámos na posição de depender da sua boa vontade depois de anos e anos de farra orçamental, pagamentos a clientelas e gastos lunáticos. Jornalista, www.twitter.com/jmf1957
Comentários