"Do tempo de Salazar"

PÚBLICO, 28.05.2009, Helena Matos

Um pedido ao primeiro-ministro: não saia mais pela porta das traseiras. Ao menos isso. Não envergonhe a democracia

Esta é uma das mais eficazes muletas de conversa em Portugal: "do tempo de Salazar". Não sei se está suposto que, após o 25 de Abril de 1974, tivéssemos entrado em grau zero legislativo e imitado o período do Terror da Revolução Francesa, em que, para evitarem qualquer reminiscência do passado, os revolucionários mudaram até os nomes aos dias da semana e aos meses do ano, mas a verdade é que muita da legislação e regulamentação que nos tem regido remonta ao Estado Novo ou até a muito antes dele. Por exemplo, o Código Comercial, cujo início rezava assim "Dom Luís, por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves. Fazem saber a todos os nossos súbditos, que as cortes gerais decretaram e nós queremos a lei seguinte", não só passou da monarquia para a I República, como desta para o Estado Novo e deste para o PREC e ainda para a democracia. Mas não acaba aqui a vida deste código, pois no distante e independente Moçambique até há bem pouco tempo vigorou o Código Comercial do tempo de "Dom Luís, por graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves". E bem mais material que a introdução do dito Código Comercial é o Inatel, que mais não é que a antiga FNAT criada por Salazar com uma mudança de nome e uma modernização das instalações. Logo o critério da indignação com o que ficou "do tempo de Salazar" é não só muito selectivo, como até há quem nunca tenha saído desse tempo:

I "Governo fascista é a morte do artista." Do episódio da António Arroio tiram-se várias conclusões. A primeira e mais óbvia é que as aulas de História devem andar pelas ruas da amargura e não apenas em Espinho. É preciso saber poucochinho do passado e também do presente para considerar Sócrates fascista. E é sobretudo necessário ignorar o papel desempenhado por aqueles que se designavam vanguardas artísticas na implementação dos totalitarismos, para gritar que "Governo fascista é a morte do artista". Os subsídios aos artistas, os apoios à criação e a ideia de que os governos devem ter uma política cultural própria, tudo isso tão do agrado dos meninos da António Arroio, faz parte da ideologia fascista. Li que os responsáveis da António Arroio se propõem fazer uma espécie de conferência com os alunos para esclarecer alguns equívocos. Seria muito útil se lhes explicassem o papel desempenhado pelos artistas de vanguarda no Secretariado da Propaganda Nacional dos anos 30 e durante o PREC, em 1975. O país pouparia dinheiro e os artistas ganhariam independência e, consequentemente, qualidade.
Para o fim um pedido ao primeiro-ministro: não saia mais pela porta das traseiras. Quando for apenas um cidadão, saia como quiser e por onde quiser. Enquanto for primeiro-ministro, coisa que eu espero ansiosamente que finde, saia pela porta da frente. Ao menos isso. Não envergonhe a democracia. Como assinala o blogger Nuno Nogueira Santos, o último primeiro-ministro da ditadura, Marcelo Caetano, quando, no Quartel do Carmo, lhe foi proposto que saísse pelas traseiras respondeu: "Não! Só saio daqui pela porta por onde entrei. A porta da frente." Salgueiro Maia percebeu como sair pela porta da frente era importante para a dignidade de Marcelo Caetano, dos militares que o depunham e do regime que dali nasceria. Com poucos homens e muita coragem Salgueiro Maia levou Marcelo Caetano pela porta da frente. É nestas coisas que as pessoas se distinguem.

II A nova Moral e Religião. Falo naturalmente da Educação Sexual. A discussão sobre a imposição pelo Governo da frequência obrigatória de tempos lectivos para temáticas da esfera do comportamento e da privacidade não começou em Portugal com a disciplina de Educação Sexual. Nos anos 30, ou seja, no tempo de Salazar, tornou-se obrigatória a frequência da disciplina de Moral e Religião e a colocação do crucifixo nas salas de aula das então escolas do ensino primário. Nos anos 70, Marcelo Caetano deu por terminada a obrigatoriedade da frequência da disciplina de Moral e Religião. Como é óbvio, a medida foi mais teórica que prática, mas mesmo assim admitia-se a dispensa, possibilidade não considerada, em 2009, para a Educação Sexual. Não deixa de ser sintomático que, tal como no "tempo de Salazar", se defenda como sinal de progresso que o governo pode transformar em matéria lectiva assuntos que cabem à esfera das famílias e à privacidade de cada um. Enfim, cada tempo tem os seus proselitismos e os países de vocação paternalista não mudam assim tão depressa. Para adiantarmos caminho e fazermos qualquer coisa de útil podemos aproveitar a ocasião recuperando os gabinetes médicos escolares do tempo da I República, do tempo de Salazar e do tempo de Marcelo e que estupidamente desapareceram algures na democracia e que tanta falta fazem. Para falar de sexo e do que for preciso.

III Lei do tempo de Salazar revogada. O caso mais recente da lei revogada "do tempo de Salazar" versa os bairros sociais. Para provar da perfídia da lei agora revogada detalha-se que a mesma permitia, nos bairros sociais, o despejo por comportamentos morais e civis "indignos", como se nos arrendamentos das casas não sociais os senhorios não accionassem despejos, até para se protegerem de eventuais acusações de cumplicidade, quando descobrem que na casa ou loja que arrendaram funciona um casino, um bordel, se trafica droga ou fabrica moeda falsa.
A nova legislação sobre habitação social surgiu envolta no banho lustral da bondade por já não ser do tempo de Salazar. Aliás, a legislação foi imediatamente anunciada como provisória, pois anuncia-se legislação de fundo sobre a matéria, mas havia que acabar com a lei do tempo de Salazar. E aí tem o país, provisoriamente é certo, uma lei tão ou mais autoritária que a lei de 1945. Por exemplo, como é possível que, na nova legislação, se aceite que seja motivo para despejo receber uma pessoa durante mais de dois meses em casa? Aliás, não percebo como é que, numa democracia, uma autarquia sabe que num determinado andar de um determinado prédio alguém tem outra pessoa em casa há mais de dois meses. No salazarismo sabemos como é que isto se sabia. Na democracia não vislumbro o procedimento. Por outro lado, com a nova legislação os residentes nos bairros sociais não só passam a viver em constante devassa fiscal, como são claramente convidados, na velha tradição dos tempos do salazarismo, ou a ludibriar as autoridades ou a manterem-se pobrezinhos. Pois é preciso não esquecer que a nova legislação prevê que a alteração da condição económica que determinou a atribuição da casa social pode levar a que esta seja retirada. Não é preciso ter muita imaginação para perceber o que vai resultar daqui.
A actual legislação é tão ou mais autoritária do que a anterior. E dificilmente pode ser doutro modo, porque os bairros sociais comportam em si mesmos uma visão paternalista e autoritária sobre aqueles que para lá vão residir. Se os governos e as autarquias querem apoiar determinadas pessoas a ter uma casa, devem fazê-lo mas não criando condomínios de assistencializados, cuja vida se propõem controlar daí em diante. Paguem nos mais diversos bairros e ruas a renda ou as prestações da casa àqueles que os serviços sociais entenderem e deixem de criar reservas de tutelados. jornalista



- Em menos de 24 horas tivemos, em primeiro lugar, Vital Moreira propondo um imposto europeu. Horas depois já íamos num imposto mundial sugerido por Almeida Santos. Entretanto, na Assembleia da República, o PCP propõe alterações extraordinárias ao sistema fiscal que permitam aumentar as taxas sobre os bens de luxo, transacções bolsistas e aquilo que o PCP designa como "lucros milionários das empresas". Amanhã, certamente, outras propostas do mesmo teor surgirão. Na falta de dinheiro para sustentar um Estado que gasta cada vez mais com a sua própria máquina, a nomenklatura desdobra-se em argumentos para retirar esse dinheiro do único lugar onde ele existe: o bolso dos contribuintes.
A este ritmo de criação de impostos creio que só temos duas hipóteses: ou declaramos insolvência, ou pedimos à Assembleia da República que nacionalize o país. A Constituição até o permite e era um sossego. Caso contrário, acabamos como o cavalo do inglês. Ele desabituou-se de comer. Nós vamos habituar-nos a entregar tudo ao Estado.
Ele morreu. Nós ainda não sabemos o que nos vai acontecer, mas tal como Cristo e Marx também não devemos ficar lá muito bem.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

OS JOVENS DE HOJE segundo Sócrates

Hino da Padroeira

O passeio de Santo António