Criminalidade, pobreza e demagogia

Maria José Nogueira Pinto
DN, 20080521

No último debate parlamentar a pobreza foi trazida à colação a reboque do sucedido no Bairro da Bela Vista, em Setúbal, com base numa percepção sem qualquer evidência científica mas que serviu de arma de arremesso entre bancadas e Governo.

Existem, de facto, algumas dezenas de bairros "sociais" problemáticos porque neles se concentra, de modo excessivo e desordenado, um sem-fim de problemas: má concepção urbanística, deslocalização de agregados familiares sem critérios de razoabilidade de que resultou uma mistura populacional pouco recomendável e o próprio alheamento das autarquias, donas daqueles territórios, adiando medidas necessárias mas incómodas.

Sabemos que territórios urbanos segregados tendem a ser dominados por gangues que aí desenvolvem actividades ilícitas, criando uma forte economia paralela: têm dinheiro, têm um território próprio e tornam-se muito poderosos. Porém, ao contrário do que alguns pensam, constituem uma minoria no conjunto da população residente. População que estes grupos minoritários dominam pelo terror. Não se trata de nenhum fenómeno novo, nem sequer em Portugal

O combate a esta criminalidade impõe-se, antes de mais, em nome dos que ali vivem e têm direito a um mínimo de tranquilidade, a criarem os seus filhos num ambiente seguro, a não serem dominados e empurrados para uma exclusão crescente. Foi para eles, afinal, que estes bairros foram construídos e, apesar dos erros, deviam constituir um novo ponto de partida nas suas vidas.

Sucede que esta é uma criminalidade difícil de combater por se localizar em espaços densamente povoados, por ser critica a informação num clima de medo e retaliação, sobretudo quando se sabe que os eventuais detidos são postos em liberdade poucas horas depois. Para que este combate seja bem sucedido não basta gritar por mais polícia e mais armas. E nada mais perigoso do que estabelecer um nexo de causalidade simplista entre criminalidade, pobreza e crise.

No debate parlamentar, entre bancadas e Governo, misturou-se tudo - conceitos e realidades - à boa maneira portuguesa, só que, agora, os tempos não estão para demagogias. É preciso combater a criminalidade nestes espaços, o que passa por actuar sobre eles com auctoritas, conhecimento e domínio das situações e uma visão interdisciplinar em que a intervenção social, tal como a urbanística, tem a sua função específica.

Questão muito diferente é tentar perceber se o empobrecimento súbito de extractos da classe média, provocado pelo desemprego e agravado pelo facto de 38% dos desempregados não beneficiarem de qualquer prestação pecuniária, pode, ou não, vir a gerar formas de agitação social. Para os denominados "novos pobres" o Governo prometeu pacotes de medidas que parecem não chegar aos destinatários.

Se o debate parlamentar se fizesse junto das redes de proximidade que a sociedade civil e a Igreja têm no terreno, outras coisas seriam ditas e outras consequências se retirariam. Como assim não é, resta-nos ter esperança no trabalho constante destas entidades e no rasgo de engenho que as tem levado a criarem, com a rapidez que situações de emergência requerem, respostas inovadoras para problemas sociais novos, de que são testemunho o simpósio "Reinventar a Solidariedade" e a Campanha País Solidário.

Entretanto, e curiosamente, deixamos de ouvir falar dos pobres "tradicionais" (cerca de dois milhões) que Portugal acumulou ao longo das duas últimas décadas. Milhões de contos e euros foram injectados num sistema estéril, assente numa subsidiodependência de que o Rendimento de Inserção Social é o expoente máximo com os seus miseráveis 3% de taxa de sucesso! O silêncio é compreensível: a Solidariedade Social do Estado constitui o núcleo duro da máquina de propaganda eleitoral do PS. Subsídios e votos sempre se deram bem.

MARIA JOSÉ NOGUEIRA PINTO

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