João Bénard da Costa, um renascentista do século XX
PÚBLICO, 22.05.2009, José Manuel Fernandes
Raros poderão ser lembrados como homens do seu tempo e, ao mesmo tempo, como homens da Renascença no século que viveram, o século XX
A última crónica que João Bénard da Costa escreveu no PÚBLICO foi no passado dia 7 de Dezembro. Pouco tempo depois telefonou-me a dizer que ia ser internado e não sabia se poderia voltar a escrever a sua crónica semanal, a sua Casa Encantada. Contrariei-o, e disse-lhe que cá o esperava quando recuperasse. Ontem de manhã deixei de poder esperar mais quando recebi a notícia que há meses antevia: não haveria milagre, o João não voltaria a escrever. Nem a falar-nos sobre cinema. Nem a despertar-nos a paixão por uma pintura. Nem a recordar-nos como era a Arrábida nos seus tempos de menino.
Não fixei o dia do telefonema, mas é possível que tenha sido no dia em que passava um ano em que ele, como eu, visitara o Convento da Cartuxa, em Évora. Uma visita que fixou numa crónica notável, "O clamor do silêncio". Reli-a ontem e redescobri a forma como viveu os últimos momentos da visita, em que por acaso nos juntámos ao olhar uma última vez para a fachada do convento. "Era quase noite, o céu estava carregado de nuvens. Mas, quando me voltei para trás, para um último olhar à fachada, reparei que o corpo cimeiro dos três corpos que a constituem se tingia de uma cor de laranja suave, vagamente avermelhado. Último raio do poente que, apesar de tudo, atravessava as nuvens? É bem possível. Mas se alguém me dissesse que aquela era estudadíssima iluminação também acreditava. Ali dentro - ou cá dentro - acredita-se em tudo."
É difícil sentir assim o mundo - e sentirmo-nos assim no mundo. Mas João Bénard acreditava, como ele próprio disse, "totalmente na vida, no homem e em Deus". E como foi capaz de viver e celebrar essas suas crenças, tantas vezes contagiando os que o conheciam, ensinando-lhes o optimismo com a mesma felicidade com que nos ensinou a ver cinema. No ecrã e para lá do ecrã.
Não que desconhecesse o sofrimento, ou a inquietação da dúvida.
Nessa visita à Cartuxa "um frade de nome Antão e de olhos muito claros acompanhou-nos à saída", escreveu ele, omitindo o que dias antes Adelino Gomes e António Marujo tinham contado nas páginas do PÚBLICO: o momento da revelação impossível, quando o frade soube quem era aquele homem cujo olhar se perdia na delícia do último raio de sol.
"Há 40 anos que o leio", exclama o monge. "Deve ser algum engano", pensa Bénard. "Não, não é, o espanhol conhece-
-o da revista O Tempo e o Modo, lida às escondidas, por oposição a Salazar, no tempo do Concílio Vaticano II", relataram então os repórteres do PÚBLICO. Mas a conversa prosseguiu. O frade Antão contou a João Bénard como seguira as suas dúvidas na relação com a Igreja Católica e a forma como continuara a reflectir sobre a sua fé.
Talvez não haja só coincidências e por certo que os homens de fé lerão a mão do Deus que João Bénard queria conhecer, o Deus que encontrar era a sua maior esperança de futuro, no parágrafo final da sua derradeira crónica, dedicada a Cristina Campo. "As histórias de Cristina Campo e de todos os seus heterónimos. Havidos e por haver, são a história desta dupla conversão: a da violência em sofrimento e a do sofrimento em amor. Nesta crónica, se falei de outra coisa, foi só porque me distraí muito. Dos meus defeitos, talvez seja o maior. Sem me distrair, e sem vos distrair, volto e voltei a Cristina Campo, sob um falso nome ou sob um verdadeiro nome." E tudo porque a "arca de Cristina Campos" estava a revelar a escritora que morrera jovem e se pensava ter escrito pouco. Mas não: utilizara outros nomes e Bénard achava que "arcas destas não têm fundo ou têm o fundo dos grandes mistérios que é sempre fundo nenhum".
Será que, para além das angústias espirituais, João Bénard guardou, em Lisboa ou na Arrábida, uma arca que nos permita continuar a viver com ele? A aprender com ele? A entender que as suas inquietações, a sua inabalável determinação de pensar de forma independente, tantas vezes questionando certezas anteriores, rompendo laços, indo à luta quando a falta de liberdade o exigia, participando na vida pública sempre que sentiu necessário, fiel às suas paixões e curioso até ao último dia, capaz de saltar entre um filme de Coppola e um livro de Simone Weil, de nos levar num salto a admirar a arquitectura de uma igreja em Roma para logo a seguir se perder nas matas, na luz, nas águas da sua eterna Arrábida, sentida e descrita como ninguém mais o sabia fazer.
A sua eterna curiosidade intelectual, a sua paixão pelo ecletismo, as distâncias que tomou da Igreja oficial para por ela nunca deixar de passar, lembram o ecletismo, a curiosidade, o gosto por redescobrir e ensinar a descobrir os clássicos que tanto marcaram tantos homens da Renascença. Até na sua relação com Deus.
Raros, porém, poderão ser lembrados como homens do seu tempo e, ao mesmo tempo, como homens da Renascença no século que viveu, o século XX.
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