A toxicodependência e a profecia de Goethe
28.08.2008, Manuel Pinto Coelho
A inverosímil recuperação de cerca de 600.000 toxicodependentes dá uma imagem pateticamente falaciosa da realidade
No passado dia 17 de Agosto, o JN fez referência, em manchete, na primeira página, que "Meio milhão recupera das malhas da droga" divulgando, de forma estranhamente apressada, o resultado do "II Inquérito ao consumo de substâncias psicoactivas na população portuguesa" um "estudo ainda em observação".
Essa inverosímil notícia, da fantástica recuperação de cerca de 600.000 toxicodependentes, tentando obscurecer a triste realidade do aumento para o dobro do número de dependentes de drogas, deu uma imagem pateticamente falaciosa da realidade e ludibriou milhares de leitores já que, quando lemos aquele título, somos induzidos a acreditar que mais de meio milhão de toxicodependentes se trataram e curaram.
Atendendo à reconhecida dificuldade em mobilizar a pessoa toxicodependente para o tratamento e ao facto de o número de doentes inscritos nos centros de tratamento do IDT rondar os 70.000, perguntamo-nos como é possível o número apresentado?
Partindo do fictício pressuposto que o processo de recuperação decorreu correctamente, ou seja, nas dimensões física, psíquica e social ou, por outras palavras, se esse número de pessoas se tratou e curou do seu problema de toxicodependência, então, dos 9,5 milhões que constituem a população portuguesa, 5% desta seria constituída por toxicodependentes recuperados.
Sendo a taxa habitual de sucesso na recuperação deste tipo de problema, na melhor das hipóteses, da ordem dos 30%, isto quereria dizer que Portugal teria mais de dois milhões de toxicodependentes, cerca de 1/5 da sua população, para só falar dos inscritos o que apesar da política vigente na área estar longe de ser a melhor, está a grande distância de ser verdade. A ser assim, Portugal deveria inscrever rapidamente o seu nome no Guinness!
Se juntarmos a tudo isto, o relatório resultante da última "Auditoria a programas de tratamento e de reinserção social no âmbito das políticas da luta contra a droga e a toxicodependência" feita pelo Tribunal de Contas ao IDT e que refere que "Na área do tratamento encontravam-se previstos cinco objectivos operacionais e treze acções/ actividades, das quais quatro não tinham metas claramente quantificadas. Das treze acções previstas apenas foram realizadas seis (total ou parcialmente)", então, a nossa perplexidade é total. Cita ainda a peça que, "Nos últimos seis anos, mais de meio milhão de portugueses passaram a ex-toxicodependentes,".
Ficámos assim a saber que, quem tenha consumido mesmo que só uma vez (30,6% dos inquiridos consumiram 1 vez), uma qualquer droga é, no entender do IDT, toxicodependente, e se não o voltar a fazer, é então promovido a ex-toxicodependente!
Se pensarmos que toda aquela imensidão de portugueses consumiu drogas nos últimos 6 anos, sendo que este número só faz referência aos indivíduos que responderam ao dito inquérito, se lhe juntarmos os não questionados que também as consumiram, teremos que concluir que as estratégias de Prevenção implementadas pelo IDT falharam estrondosamente contrariando o optimismo do Presidente do IDT " O número de desistentes deixa-nos optimistas. Moderadamente, mas, sim, optimistas".
Finalmente, uma referência a uma outra afirmação do Presidente do IDT, citado na mesma peça: "Com variações apenas do grau de toxicidade, todos somos dependentes e potenciais dependentes."
Ainda que por duas razões diferentes parece-nos particularmente grave aquela afirmação. Primeiro, porque banalizando o consumo está paradoxalmente, pelas funções que exerce - as de responsável (?) máximo do IDT a incentivá-lo e segundo, perigosamente, pelas consequências que tais afirmações podem provocar nos ainda não dependentes.
Considerando que pela voz do Governo, através do IDT, os dependentes são doentes, a ser verdade que "todos somos dependentes e potenciais dependentes" então... construam-se rapidamente novos hospitais. Com a máxima urgência!
Falar com esta ligeireza e falta de rigor é um desrespeito para com todos os técnicos que, no sector privado ou nos Serviços do próprio IDT tentam, de algum modo, tratar os toxicodependentes e combater o fenómeno. Talvez seja esta postura pouco ética que o IDT vem adoptando que está a levar os seus técnicos, cada vez em maior número, a abandonar os serviços.
Mas não podemos terminar sem fazer ainda referência a uma "tirada" dum tal "mestre em psicologia de drogas" (?), Agostinho Rodrigues, citado na peça, que considera que há que integrar as drogas na nossa cultura e "humanizar o consumo" juntando seguramente a sua a outras vozes que, desconhecendo que humanismo não envolve a facilitação do consumo de substâncias tóxicas, anseiam pela abertura de, entre outras formas de facilitação dos consumos, das famosas salas de chuto.
Com espantosa presciência, Goethe antecipou a "medicalização humanista" da vida. Ele escreveu: "Eu acredito que no fim o humanitarismo triunfará, mas eu receio que, ao mesmo tempo, o mundo se torne um grande hospital, com cada pessoa a actuar como se fosse enfermeiro da outra." Presidente da Direcção da APLD
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