1918-2008 Manuel de AlmeidaTrindade: O bispo que bateu o pé ao gonçalvismo

PÚBLICO

08.08.2008, António Marujo

Homem antigo, trato elegante, cauteloso, carácter firme. Era o último bispo português que tinha participado em todo o Concílio Vaticano II, nos anos 60. Morreu na terça-feira

No dia 7 de Julho de 1975, o bispo de Aveiro ainda demorou a tomar a decisão da sua vida. Manuel de Almeida Trindade era um homem discreto e prudente, que prezava os valores tradicionais. Mas acabaria por convocar para dia 13 desse mês a primeira de várias manifestações de católicos que, no "Verão quente" de 1975, reivindicaram a propriedade católica da Rádio Renascença e ajudaram a arrefecer os ímpetos do Governo de Vasco Gonçalves. Almeida Trindade morreu terça-feira em Coimbra, com 90 anos. Foi ontem sepultado em Aveiro, onde foi bispo durante 25 anos.
Era um homem de extracção antiga: trato elegante e educado, cauteloso nos julgamentos, voz possante mas delicada, carácter firme mas sem roçar o autoritarismo. Foi Manuel de Almeida Trindade quem se destacou entre os seus pares, presidindo aos destinos da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) na transição entre os cardeais Manuel Gonçalves Cerejeira e António Ribeiro - era ele o presidente da CEP a 25 de Abril de 1974.
Vincadamente culto, foi dos poucos bispos portugueses a alimentar o gosto pela escrita e pelas memórias - autobiográficas ou retratando pessoas e acontecimentos. Era também o último dos bispos portugueses ainda vivos a ter participado nas quatro sessões do Concílio Vaticano II (1962-65).
Por vezes hesitante sobre ventos mais renovadores, preferia o caminho da segurança e da prudência. Assim se manifestou quando o então bispo do Porto, António Ferreira Gomes, regressou do exílio a que fora forçado por Oliveira Salazar. Nas Memórias de um Bispo, talvez o seu livro mais importante, escreve: "Não estava em causa, do meu ponto de vista, o 'conteúdo' da carta [de D. António a Salazar, escrita em 1958 e que motivou o exílio do bispo], mas o modus faciendi, isto é, a sua divulgação antes da entrevista pedida ao Doutor Salazar ter sido concedida. A mim, parecia-me que não era correcto."
Na questão do aborto, revelaria o seu forte apego à moral mais tradicional da Igreja. Em 1984, após a aprovação da primeira lei despenalizando o aborto nalgumas situações, o bispo concedeu uma entrevista à RDP classificando o aborto como uma "monstruosidade". O que lhe valeu uma "carta aberta", no Diário de Lisboa, de uma mulher que o acusava de "irresponsabilidade" e "farisaísmo". Ao que o bispo respondeu com uma carta pessoal, depois inserida no livro Pessoas e Acontecimentos. Nela recusa responder à "palavra agreste" que recebera, antes preferindo discutir o problema "delicado" do aborto.
O padre João Gaspar, historiador, que foi secretário de D. Manuel Trindade e é hoje vigário-geral da diocese de Aveiro, resume agora, citado pela agência Ecclesia, que D. Manuel foi sempre um espírito de "prudência, um pacificador e congregador".
Apesar do temperamento, era capaz de alguns riscos. Foi o caso da manifestação de 1975, que Sebastião Salgado fotografou e legendou como "contra-revolucionária" - o que levou o bispo a escrever para Salgado e para a Editorial Caminho, dando os parabéns pela "esplêndida" colecção de fotos, mas contestando a legenda, inserida na obra Um Fotógrafo em Abril.
Essa decisão e alguns outros episódios por ele protagonizados enquanto presidente da CEP levam o actual bispo de Aveiro, António Francisco dos Santos, a afirmar que "também graças ao senhor D. Manuel o futuro da Igreja e do país se decidiram em horas cruciais com enorme clarividência e necessário equilíbrio".
A manifestação de 13 de Julho em Aveiro levou outros bispos a organizar idêntica iniciativa nas suas cidades. Conta o antigo secretário que, naquela noite, Trindade chegou a temer ser detido (alguns manifestantes foram) e que houve documentos importantes retirados de casa.
A capacidade de arriscar revelar-se-ia também, anos mais tarde, no apoio a jovens católicos que pretendiam declarar-se objectores de consciência ao serviço militar, na época obrigatório. Ou, muitos anos antes, na defesa do então seminarista Eurico Nogueira contra um professor menos tolerante, salvando a vocação sacerdotal do futuro arcebispo de Braga.
Manuel de Almeida Trindade nasceu a 20 de Abril de 1918 em Monsanto da Beira, filho de Daniel Ferreira da Trindade e Gracinda Rodrigues de Almeida. Os pais, de Anadia, decidiriam pouco depois voltar às origens, indo para Famalicão, lugar então conhecido como a "Rússia", pelo número de deportados e perseguidos pela PIDE que ali havia.
Em 1934, já seminarista em Coimbra, Almeida Trindade foi estudar para a Universidade Gregoriana de Roma. A 21 de Dezembro de 1940 foi ordenado padre, de novo em Coimbra. Logo em 1942, é nomeado vice-reitor do Seminário de Coimbra. Tinha menos de 24 quando recebeu o cartão do bispo a nomeá-lo. Foi devolvê-lo, pensando que era engano.
Erros e lacunas
Em 1962, é nomeado bispo de Aveiro. Uma semana depois viajava para Roma, como participante no Vaticano II - facto que marcaria a sua acção pastoral na nova diocese: renovação de estruturas, formação dos católicos, com a criação do Centro de Cultura Católica, visitas pastorais no Inverno, durante as quais visitava fábricas, escolas, doentes e pobres. Mas, como confessa nas Memórias de um Bispo, a sua "espécie de paixão" era para com o seminário e o clero - não por acaso, a autobiografia começa com a sua admissão ao seminário. E apelava com frequência aos mais novos para que se dedicassem à vida sacerdotal e religiosa.
Apesar do impacto do Vaticano II na sua personalidade, admite que foi "uma lacuna" os bispos portugueses não terem levado peritos mais preparados para debater questões teológicas.Outro erro, concede, foi a não publicação de um documento dos bispos a defender a projectada visita do Papa Paulo VI a Goa. O patriarca Cerejeira não o quis fazer por estar em Roma, com o argumento de que não conseguia avaliar bem a situação. O bispo de Aveiro considerou a decisão uma ocasião perdida pela hierarquia católica de "manifestar corajosamente o seu ponto de vista" sobre o regime.
Almeida Trindade entendia que a contemporaneidade se debatia sobretudo com dúvidas. Preferia Santo Agostinho a São Tomás de Aquino, pelas "crises por que passou" e pelas dúvidas que o atormentaram. Mas tinha um gosto clássico - e lamentava o fraco saber do clero pelo latim e pelo grego.
D. Manuel retirara-se para a sua "tebaida", como chamava ao quarto do Seminário de Coimbra onde viveu desde que deixou Aveiro, em 1988. Ali escreveu vários livros, recolhendo notas, fragmentos do diário, observações de encontros ou reuniões - recomendava às pessoas que escrevessem sobre experiências importantes que viviam.
Quando iniciou a escrita das Memórias de um Bispo, fê-lo com pudor e inibição. Quando terminou, escreveu: "Creio que Deus tem sido muito meu amigo (...), faz-me sentir agora uma ternura e uma liberdade interior que eu nunca sentira."

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