O MUNDO E A DEMOCRACIA PECULIAR
Diário de Notícias, 080818
João César das Neves
professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
Os americanos vivem a sua 56.ª campanha presidencial. Qualquer estrangeiro deve assumir que não entende tão peculiar e fascinante processo. Em geral, os comentadores externos falam com sobranceria sobre o que desconhecem. Como na paixão amorosa, febre do futebol ou fervor religioso, só quem vive por dentro consegue compreender. De longe podemos admirar ou reprovar, nunca avaliar ou analisar.A democracia americana é única no mundo. Não é excelente, nem horrível. Apenas ímpar. De alguma maneira, todas são. As outras, partilhando elementos básicos, não se comparam.As peculiaridades são bem evidentes. Primeiro, os EUA são herdeiros de um projecto filosófico. O seu intrincado sistema foi desenhado por uma elite idealista que pretendia conceber o país perfeito. Em si isto é comum e tem-se repetido sucessivamente, da França de Danton à URSS de Lenine e Israel de Ben-Gurion. A diferença é que a América ainda acredita nesse mito. O símbolo é precisamente a longevidade eleitoral, há 220 anos repetindo o rito quadrienal, sem que guerras, civis ou longínquas, depressões ou crises variadas afectem a pontualidade do cerimonial.Por outro lado, aspirando à excelência mítica, paradoxalmente o sistema não perde realismo nem esconde a boçalidade. O símbolo é também esse sufrágio, na rudeza e virulência da campanha vivida intensamente por todo o país. Todas as democracias têm propaganda difamatória, mas é raro atingir-se os insultos, calúnias e maquinações da refrega americana. Que vêm da primeira hora. Os media modernos empolaram o processo mas, se existiu evolução, foi moderadora. Os excessos actuais de violência e delírio não se comparam com os setecentistas entre Republicanos de Jefferson e Federalistas de Hamilton.A eleição de 2008 parece especial. Primeiro, é um processo aberto, sem envolvimento de ex- -presidentes ou vice-presidentes. Isso apenas sucedeu quatro vezes na História (sem contar, obviamente, a primeira), em 1816, 1824, 1876 e 1928. É, pois, preciso recuar 80 anos para encontrar uma escolha sem participação do detentor do cargo (em 1952, apesar da eleição final ser aberta, o vice-presidente Alben W. Barkley participara e fora derrotado nas primárias democratas). Isto desliga a escolha do mandato anterior.Outro facto original é a própria originalidade dos candidatos. Nas primárias viu-se provável o primeiro Presidente mormon (Mitt Romney), mulher (Hillary Clinton), clérigo (Mike Huckabee), italo-americano (Rudy Giuliani) ou casado três vezes (Giuliani). Afinal teremos apenas, ou o primeiro Presidente negro, Barack Hussein Obama, ou o mais velho de sempre à entrada, John McCain. A América está, sem dúvida, mais diversificada.Estas originalidades passam ao lado do essencial. Aliás, contam mais fora que dentro da colorida história da democracia americana, habituada a coisas muito estranhas. Bizarros nos EUA seriam os nossos cinzentos candidatos e mornas campanhas. Por exemplo, a fascinante "obamania", que deixa extasiados os políticos europeus, lembra casos antigos e pouco significa. A eleição não só será muito mais equilibrada do que se julga por cá mas até o recente triunfo europeu do senador do Ilinóis o prejudicou.O essencial é este desfasamento mútuo entre mundo e americanos. Os EUA desconhecem o planeta, que não entende os EUA. A eleição mostra-o. A principal tarefa do próximo presidente será a integração no novo quadro internacional. Mas ele será eleito a partir de problemas locais. O que preocupa os votantes é o emprego, saúde e segurança, salário, aborto, religião ou imigração.Vivemos num mundo crescentemente complexo. Mantém-se uma potência dominante, mas multiplicam-se actores, esferas de influência, interesses, conflitos. Os EUA aprenderam no Afeganistão e Iraque que não podem impor a sua vontade. Mas ainda não traçaram um quadro de alianças e clivagens compatível com a ascensão e decadência das potências intermédias. À frente desta complexidade estará um homem escolhido por um povo preocupado com a renda de casa.
João César das Neves
professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
Os americanos vivem a sua 56.ª campanha presidencial. Qualquer estrangeiro deve assumir que não entende tão peculiar e fascinante processo. Em geral, os comentadores externos falam com sobranceria sobre o que desconhecem. Como na paixão amorosa, febre do futebol ou fervor religioso, só quem vive por dentro consegue compreender. De longe podemos admirar ou reprovar, nunca avaliar ou analisar.A democracia americana é única no mundo. Não é excelente, nem horrível. Apenas ímpar. De alguma maneira, todas são. As outras, partilhando elementos básicos, não se comparam.As peculiaridades são bem evidentes. Primeiro, os EUA são herdeiros de um projecto filosófico. O seu intrincado sistema foi desenhado por uma elite idealista que pretendia conceber o país perfeito. Em si isto é comum e tem-se repetido sucessivamente, da França de Danton à URSS de Lenine e Israel de Ben-Gurion. A diferença é que a América ainda acredita nesse mito. O símbolo é precisamente a longevidade eleitoral, há 220 anos repetindo o rito quadrienal, sem que guerras, civis ou longínquas, depressões ou crises variadas afectem a pontualidade do cerimonial.Por outro lado, aspirando à excelência mítica, paradoxalmente o sistema não perde realismo nem esconde a boçalidade. O símbolo é também esse sufrágio, na rudeza e virulência da campanha vivida intensamente por todo o país. Todas as democracias têm propaganda difamatória, mas é raro atingir-se os insultos, calúnias e maquinações da refrega americana. Que vêm da primeira hora. Os media modernos empolaram o processo mas, se existiu evolução, foi moderadora. Os excessos actuais de violência e delírio não se comparam com os setecentistas entre Republicanos de Jefferson e Federalistas de Hamilton.A eleição de 2008 parece especial. Primeiro, é um processo aberto, sem envolvimento de ex- -presidentes ou vice-presidentes. Isso apenas sucedeu quatro vezes na História (sem contar, obviamente, a primeira), em 1816, 1824, 1876 e 1928. É, pois, preciso recuar 80 anos para encontrar uma escolha sem participação do detentor do cargo (em 1952, apesar da eleição final ser aberta, o vice-presidente Alben W. Barkley participara e fora derrotado nas primárias democratas). Isto desliga a escolha do mandato anterior.Outro facto original é a própria originalidade dos candidatos. Nas primárias viu-se provável o primeiro Presidente mormon (Mitt Romney), mulher (Hillary Clinton), clérigo (Mike Huckabee), italo-americano (Rudy Giuliani) ou casado três vezes (Giuliani). Afinal teremos apenas, ou o primeiro Presidente negro, Barack Hussein Obama, ou o mais velho de sempre à entrada, John McCain. A América está, sem dúvida, mais diversificada.Estas originalidades passam ao lado do essencial. Aliás, contam mais fora que dentro da colorida história da democracia americana, habituada a coisas muito estranhas. Bizarros nos EUA seriam os nossos cinzentos candidatos e mornas campanhas. Por exemplo, a fascinante "obamania", que deixa extasiados os políticos europeus, lembra casos antigos e pouco significa. A eleição não só será muito mais equilibrada do que se julga por cá mas até o recente triunfo europeu do senador do Ilinóis o prejudicou.O essencial é este desfasamento mútuo entre mundo e americanos. Os EUA desconhecem o planeta, que não entende os EUA. A eleição mostra-o. A principal tarefa do próximo presidente será a integração no novo quadro internacional. Mas ele será eleito a partir de problemas locais. O que preocupa os votantes é o emprego, saúde e segurança, salário, aborto, religião ou imigração.Vivemos num mundo crescentemente complexo. Mantém-se uma potência dominante, mas multiplicam-se actores, esferas de influência, interesses, conflitos. Os EUA aprenderam no Afeganistão e Iraque que não podem impor a sua vontade. Mas ainda não traçaram um quadro de alianças e clivagens compatível com a ascensão e decadência das potências intermédias. À frente desta complexidade estará um homem escolhido por um povo preocupado com a renda de casa.
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