Os Papas também dão murros na mesa
José Maria C.S. André 2.07.17
Correio dos Açores, Verdadeiro Olhar, ABC Portuguese Canadian Newspaper, Spe Deus, Clarim, O Alcoa
Nos últimos 100 anos, raramente um Papa deu um murro na mesa. A regra é ouvir, esclarecer e contar com o tempo para que as pessoas se emendem. A paciência costuma ultrapassar todas as expectativas. Mesmo quando toma uma medida desagradável, o Papa «não levanta a voz». Mas há excepções, alguma recente, como passo a contar, começando por exemplos mais antigos.
Pio XI publicou duas Encíclicas cáusticas contra os fascistas e uma, muito dura, a manifestar a preocupação da Igreja quando Hitler chegou ao poder. Talvez por isso, se dizia que Pio XI tinha mau feitio.
Paulo VI não protestava, mas sofria amargamente a crise da Igreja. Os mais próximos contam que Paulo VI chorava a infidelidade de alguns e a falta de respeito pelos sacramentos, e muitas vezes ele manifestou a sua dor em público. «Esperava-se que depois do Concílio viesse uma época de luz para a história da Igreja. Pelo contrário, vieram nuvens pesadas, tempestades, escuridão, busca, incerteza... O fumo de satanás entrou por alguma frincha no templo de Deus»! Via-se-lhe o rosto cada vez mais marcado pelo sofrimento, mas preferia não dar murros na mesa. Quando o responsável da reforma litúrgica abusou gravemente da confiança do Papa, mandou-o para o Iraque, sem mais comentário.
João Paulo II foi mais expressivo. Por exemplo, em 1983, à chegada à Nicarágua, ainda na pista do aeroporto, deu uma descompostura veemente e pública ao Pe. Ernesto Cardenal, ministro do Governo revolucionário, transmitida em directo pela televisão e conservada no Youtube.
Numa visita à Sicília, à varanda do paço episcopal, encostou a férula ao ombro e, gesticulando com os dois braços, dirigiu-se aos gritos à Máfia, ameaçando-os com o castigo terrível do inferno e pedindo-lhes que se arrependessem. Na recente visita de Francisco à Sicília, a cena repetiu-se com alguma semelhança.
No auge da guerra na antiga Jugoslávia, João Paulo II mandou que uma lamparina ardesse dia e noite, em sinal de oração ininterrupta, até se alcançar a paz, e celebrou a Eucaristia na basílica de S. Pedro, por essa intenção. Tive a sorte de assistir. Depois da homilia, continuou a falar, sem papel, para aqueles que o escutavam do outro lado do mar Adriático. Sentia-se a sua angústia profunda; a cada frase, o tom de voz aumentava, sem olhar para ninguém, como se estivesse sozinho. Não se ouvia a respiração das 20 mil pessoas que enchiam a basílica, apenas o estrondo da voz poderosíssima do Papa. Pensei que talvez os vidros não aguentassem, porque quem tinha o comando da amplificação sonora estava petrificado, sem reacção. O Papa gritava às instituições internacionais, pedindo-lhes que interviessem. Pareceu uma eternidade até que, quando houve um segundo de intervalo, a tensão explodiu num aplauso compacto. O aplauso não cresceu aos poucos, rebentou em uníssono. Milhares de pessoas tiveram simultaneamente o impulso de se comprometer com a oração do Papa. Foi como se nessa altura João Paulo II tivesse reparado que não estava sozinho. Não acrescentou mais nada e continuou a celebração.
Há poucas semanas, no dia 8 de Junho, o Papa Francisco recebeu os representantes da Nigéria, porque o Bispo nomeado em 2012 por Bento XVI para a diocese de Ahiara ainda não conseguiu tomar posse. Não se trata de um antagonismo tribal, mas da revindicação de alguns padres que querem ser promovidos ao episcopado, para essa diocese ou para outra qualquer. A «claque» mobilizada por eles exibiu-se em desacatos violentos em frente da catedral de Ahiara e a polícia interveio, prendendo vários, incluindo 4 padres. Francisco não levantou a voz, mas o murro na mesa foi mais do que simbólico: deu 30 dias a cada um dos eclesiásticos de Ahiara para lhe escrever uma carta a pedir perdão, a manifestar dor por tudo o que aconteceu e a aceitar a nomeação do bispo. O prazo termina no dia 9 de Julho. Quem não cumprir, fica imediatamente suspenso, impedido de desempenhar qualquer função na Igreja ou celebrar os sacramentos.
As atitudes duras de um Papa não obedecem a estados de ânimo nem seguem um critério de justiça penal. Um Papa procura tratar cada filho da forma que mais o ajuda. Como Jesus, o resultado tem os seus paradoxos: consola quem cometeu pecados graves e corre à chicotada uns mercadores que montaram a tenda no sítio errado.
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