Desconfiar das instituições

ALEXANDRE HOMEM CRISTO  OBSERVADOR     03.07.17
É alarmante que, na hierarquia do Estado, todos fujam às suas responsabilidades. É o que mais corrói a confiança dos cidadãos: a impotência perante os poderes instalados, inimputáveis e inatingíveis.
O que aconteceu em Tancos – o maior assalto a armamento militar neste século na Europa – é inaceitável e incompreensível num Estado moderno. Não vale a pena meter água na fervura: esta situação põe em causa a segurança nacional e a dos aliados europeus. E se algum do armamento roubado for utilizado num ataque terrorista, esta falha de segurança terá custado vidas. Sendo este um sector de soberania e de exclusiva responsabilidade do Estado, não se percebe o que mantém no lugar o ministro da Defesa Nacional (MDN) e o chefe de Estado-Maior do Exército (CEME). Sim, suspendeu cinco comandantes, para não prejudicar as investigações, mas esqueceu-se de si próprio. Se há casos em que a responsabilização política é directa e inequívoca, este é um deles. É de bom senso exigir a demissão imediata de ambos.
Enquanto isso não acontece (se é que acontecerá), a história piora. Confrontado com este incidente de extrema gravidade, a preocupação do CEME tem sido a sua própria desresponsabilização. Primeiro, disse que “estes roubos podem acontecer em qualquer Exército, em qualquer país, desde que haja intenções, vontades e capacidades”. Ora, poder até podem – na teoria tudo é possível – mas, na prática, aconteceu em Tancos e não num outro sítio qualquer. Segundo, afirmou que não lhe “compete avaliar porque é que a videovigilância estava avariada há cerca de dois anos”. Ou seja, para o CEME, uma falha de segurança grave que deixou o armamento à mercê do assalto na mais importante base do Exército não é um assunto que mereça a sua avaliação.
Entretanto, tudo piora ainda mais. Em declarações ao país, o MDN cometeu dois erros imperdoáveis para quem está na sua posição. Primeiro, tentando desdramatizar e talvez achando tranquilizar a população, informa que “há quebras e falhas de segurança muito superiores” às que permitiram o assalto em Tancos. A ser verdade tal afirmação, e seria muito importante que o MDN explicasse o que quis dizer com isso, Portugal tem tremendas fragilidades em termos de segurança nacional. Segundo, o MDN sugere que, enquanto ministro, não sabe “se há falta de segurança em Tancos”. Ora, se não sabe devia saber – era o que faltava se cada ministro lavasse as mãos do que se passa sob a sua tutela. E, de resto, tudo indica que o ministro sabia mesmo, porque assinou um despacho no início de Junho para autorizar o reforço da vedação que havia sido cortada. E espera-se que a sua decisão tenha sido fundamentada no conhecimento da situação.
As palavras gastam-se depressa e escrever que isto é um escândalo pode não fazer justiça à real gravidade do que caiu sobre Portugal nos últimos quinze dias. Em Tancos, aconteceu o maior roubo de armamento militar deste século na Europa. Em Pedrógão Grande, assistiu-se à maior tragédia humana da democracia portuguesa. E, em Lisboa, surgiu uma fuga de informação inédita em mais de vinte anos de exames nacionais. Tudo isto é grave, na sua devida escala e grau. Mas verdadeiramente alarmante é que, na hierarquia do Estado, todos estejam a fugir às suas responsabilidades. Não há responsáveis, não há um fidedigno apuramento das responsabilidades, não há expectativas de consequências para quem for culpado, não há problemas corrigidos. No fim do dia, é isso que mais corrói a confiança dos cidadãos em quem os representa no Estado: a impotência perante os poderes instalados, inimputáveis e inatingíveis.
Daqui a uns meses, quando se fizer o balanço destes tempos, será esta uma das conclusões. Para sobreviver à sucessão de crises, o Estado, o governo e os interesses instalados adiam tudo para concluírem nada, sacrificando de vez a confiança dos cidadãos na representação política e nas instituições da república. É um caminho perigoso. Quando o desgaste se impuser e quando desconfiar das instituições da democracia portuguesa ascender a imperativo, já não haverá retorno.

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