O que separa (e junta) Pedrogão Grande e Tancos
ANTÓNIO COSTA ECO.PT 02.07.17
O incêndio em Pedrógão Grande revelou-se uma tragédia de proporções inéditas no país, com 64 mortos e mais de 200 feridos, o roubo de armamento em Tancos é uma ameaça e poderá vir a transformar-se numa nova tragédia se aquele material de guerra vier a ser usado em atos terroristas, como se teme, mas o ponto que os une já é o Estado, ou a falta dele. O Estado falhou outra vez na segurança e na proteção, a primeira das suas funções e missões, quando a austeridade, diziam-nos, já tinha terminado em janeiro de 2016.
Não há hoje um português que viva numa aldeia perdida no interior do país que se sinta seguro, e não é preciso sequer um focus group para saber isso. E, perante a falha de segurança que permitiu o roubo de 1400 cartuchos de nove milímetros, 200 granadas de vários tipos e 264 unidades de explosivo plástico (segundo o El Espanol), já não é só um sentimento de insegurança que nos assalta, é mesmo uma espécie de resignação perante a incapacidade do Estado em proteger os seus.
Num país em que tantos vivem do Estado e em que outros tantos o capturaram para os seus interesses, estes dois casos são a evidência de que é mesmo necessário reformar o Estado e a sua organização. Há dois anos, qualquer coisa que sucedesse tinha uma explicação fácil, era a austeridade e, particularmente, um responsável, Pedro Passos Coelho. Onde estão Catarina Martins e e Jerónimo de Sousa?
Como nos anunciaram que a austeridade acabou em janeiro de 2016, agora é difícil explicar que o que se gastou num lado teve de ser compensado com cortes no outro. Como o Estado continua pesado, gordo, o que se deu de um lado, tirou-se do outro. Chega a ser penoso ver o ministro da Defesa anunciar que já estava previsto um investimento de 95 mil euros, leram bem, 95 mil euros para equipar Tancos com videovigilância, uma ferramenta óbvia num sítio de alta segurança e que, se existisse, já teria acelerado as investigações a este roubo. Cumprimos o défice, sim, e ainda bem, mas não temos dinheiro para videovigilância. Dito de outra forma, a austeridade – ou a consolidação das contas públicas – não explica tudo, são as opções políticas que têm de ser avaliadas. Porque há vários caminhos para chegar ao mesmo sítio.
A tragédia de Pedrógão Grande tem duas semanas e ainda não houve um pedido de desculpa aos que foram afetados por parte de quem representa o Estado, leia-se o governo, as explicações são poucas, as contradições entre serviços muitas, e ninguém assume responsabilidades políticas. É chocante. Há comissões independentes anunciadas que, de resto, só confirmam que os próprios políticos – os do governo e da oposição – não confiam nas instituições inspetivas do Estado, por desconfiança técnica ou política, qual delas a pior. E a ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, serve neste momento apenas como imagem de um governo que chora as vítimas, enquanto o primeiro-ministro tenta saber como é que o incêndio afetou a sua imagem.
No caso de Tancos, o ministro da Defesa, Azeredo Lopes, anunciou que assume as responsabilidades políticas, mas ninguém percebeu em que é que isso se traduz. E o chefe de Estado Maior do Exército já exonerou cinco comandantes em Tancos de forma temporária, num processo que não é só duvidoso do ponto de vista legal, é uma acusação política pública daqueles militares enquanto decorre um processo de investigações a realizar pela Inspeção-Geral do Exército, para analisar a armazenagem, à questão da intrusão e o sistema de vigilância. Só politiquice. Já assumir as suas próprias responsabilidades é mais difícil…
Marcelo Rebelo de Sousa, é bom recordar, começou por dizer que tinha sido feito tudo o que era possível em Pedrógão Grande, coisa que, já se sabe, é tudo menos verdade. Agora, no caso de Tancos, exigiu o óbvio, uma investigação. Mas o Presidente tem particulares responsabilidades neste caso, porque é o chefe supremo das forças armadas. E se o governo não as assume, convém que Marcelo imponha a sua autoridade dada pela Constituição. Continua a confiar no ministro e no chefe de Estado Maior do Exército? Isso é o que precisa de dizer.
Num caso e no outro, o nome do país voltou a ser referenciado na imprensa internacional, e desta vez não foi para figurar nas listas dos mais desejados ou na dos países com os segredos mais bem escondidos. No espaço de semanas, o mundo viu o estado do nosso Estado.
Se não fosse trágico, seria cómico: o governo não falhou nas contas públicas, sabemos com que opções e a que custo, tem a conivência e cumplicidade necessárias do BE e do PCP para aprovar os orçamentos, mas falhou naquilo em que António Costa é tido como o melhor, na gestão política e na autoridade, tudo o que não se vê desde o dia do incêndio em Pedrógão Grande.
A atenção mediática passou de Pedrógão Grande para Tancos, e passará para outro caso qualquer de semelhante gravidade. Mas uns não apagam os outros, nem os tornam menos graves. Menos ainda, não dispensam o governo de dar respostas cabais, e tem tempo útil, sobre o que aconteceu em cada um deles. Só isso pode restaurar a confiança dos portugueses no Estado e no próprio governo, completamente à deriva nas duas últimas semanas.
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